A continuação da obra de Lars Von Trier mostra-se mais humana e intimista, perdendo um pouco das referências culturais que tanto desenvolveu em sua primeira metade; porém, sem perder o brilho, a ousadia e a originalidade.
Nome Original- Nymphomaniac- Volume II
Diretor- Lars Von Trier
Roteiro- Original, de Lars Von Trier
Elenco- Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin e Shia La Boeuf
Parte Técnica- Manuel Alberto Claro (F); Morten Hojgberg e Molen Marlene Stensgaard (E)
Data de Lançamento: 25 de dezembro de 2013, na Dinamarca
Vício, em uma acepção gramatical, significa falha ou defeito. Na filosofia aristotélica, é o oposto da virtude, sendo a origem de uma série de comportamentos reprováveis e imorais dos homens. Já cientificamente, é usado para definir um quadro de dependência que alguma pessoa pode vir a desenvolver, seja em relação a uma substância, a alguém ou até mesmo a algo. Ninfomania é considerado um vício, vício por sexo. E é essa faceta que Lars Von Trier desenvolve na segunda parte da obra, de maneira bem mais visceral e menos cerebral que a primeira, mas ao mesmo tempo mais humana e crítica. A história recomeça com Joe recontando a sua vida a partir da vida a dois com seu amado Jerome.
Se na primeira parte há uma verdadeira psicanálise do sexo, destrinchando suas conexões com a vida de maneira geral; nesse segundo ato temos uma psicanálise realmente humana, um aprofundamento nas necessidades de Joe e nos malefícios de seu desejo sexual insaciável. Afinal, desde o início da obra, estamos acompanhando sua trajetória. Totalmente incapaz de viver uma relação familiar e afetiva estável, nossa personagem se vê castrada, insensível aos estimulos sexuais que possam vir a ocorrer. Busca no sadomasoquismo a saída, descobrindo um lado obscuro do sexo e uma nova forma de conseguir o prazer, mas com um custo muito caro: perde sua família; perde sua integridade física e sua moralidade. O vício a consome (e a mudança da jovem Stacey Martin pela mais experiente Charlotte Gainsbourg no papel pontua isso); a destrói. Tem que se livrar dele, se disciplinar, diminuir seus impulsos. Não consegue, o abraça, mas se isola da sociedade: a marginalidade torna-se o único caminho para um pária social; um rejeitado.
Porém, questiona seu psicanalista improvisado: será que a culpa de tudo, para início de conversa, não é da sociedade? Não é ela que nos cria amarras em nome do moral, do correto? Não é ela que diz o que devemos ou não fazer? Que tolhe nossa individualidade? Não é nossa sociedade que, historicamente, condena a mulher pela busca ao prazer enquanto o aplaude o homem tido "macho alfa", o "pegador"? São as reflexões que surgem no decorrer da narrativa, bem colocadas, corretas: Lars von Trier nos convida a buscar um novo olhar sobre a repressão social moral. Qual será o verdadeiro mal: o vício por sexo ou a necessidade constante de limitá-lo? Limitação essa que não parte do indivíduo, mas sim de convenções erigidas milhares de anos atrás pela filosofia, pela moral ou pela religião... por uma construção necessariamente arbitrária, de controle em nome de algo maior. O filme torna-se mais ousado não só na visceralidade das cenas, mas também no tom ácido que assume.
No que tange as atuações, continuam afiadíssimas. Stellan Skarsgard segue brilhante como Seillig; Stacey Martin aparece bem pouco sem perder os traços da sua grande interpretação. Shia LaBoeuf volta mais demandando, crescendo em seus arcos dramáticos; o mesmo acontecendo com Charlotte Gainsbourg, perfeita no conflito perene em que se situa Joe, do céu ao inferno, da maravilha a danação, na sua passagem, como bem pontua a filme, da Igreja Oriental para a Ocidental, da alegria de viver para a dor e o sofrimento da solidão. O grande destaque de coadjuvante fica com Jayme Bell, totalmente magnético como um sádico, psicótico e completamente perdido em seu vício pela dor. Tecnicamente o filme continua brilhante, com a mesma edição frenética e envolvente, a câmera intimista e com maior destaque a trilha sonora, incrementada com mais peças clássicas e cada vez mais conectada à trama.
Lars Von Trier alcança, na união das duas partes, sua obra prima. A primeira intelectual, pop e até mesmo cômica; a segunda mais intimista, humana, depressiva e questionadora. Abusando da quebra da quarta parede em momentos de pura genialidade; coloca o sexo como centro do mundo e a sociedade como um vilão que nos impede de ver isso. Sua mensagem é poderosa, e, o mais importante, progressista, feminista e revolucionária em tempos de Marcha com Deus pela Familia e Liberdade e Rachéis Sherazharde; pautada na ideia de que o poder social corrompe, marginaliza, desvirtua conceitos, quebra a individualidade e, principalmente, nos torna verdadeiros hipócritas. A psicologia e a cultura são os fios condutores dessa ousada obra que não só diverte e impacta mas nos faz pensar sobre nossos conceitos e preconceitos, a opressão contra mulher e a marginalização ; ou, usando a expressão de Michel Foucault, a microfísica do poder de controle sobre os impulsos sexuais. E nos deixa, em aberto, após um duplo clímax espetacular (um deles, inclusive, usando acertadamente os conceitos de transferência e contra-transferência da psicologia), a seguinte pergunta: qual o mal maior, ser verdadeiro consigo mesmo ou seguir o que os outros falam que é certo?
Nota: 9