segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ela (2013) - Sétima Arte

"É como se eu estivesse lendo um livro , e é um livro que eu amo profundamente.Mas , agora , estou lendo-o devagar. As palavras estão muito separadas,e os espaços entre elas são quase infinitos.Ainda consigo te sentir. E as palavras da nossa história. Mas é nesse espaço infinito entre as palavras, que me encontro agora. É um lugar que não está no mundo físico. É onde todo resto está ,e eu nem sabia que existia." Essas são as palavras de Samantha, sistema operacional e personagem chave de Ela. Um filme,  poético, metafórico, sentimental, e casado perfeitamente com o racional. 

Nome Original- Her

Diretor- Spike Jonze

 Roteiro- Original, por Spike Jonze

Elenco- Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson, Olivia Wilde e Rooney Mara


Parte Técnica- Hoyte Van Hoytema (F); Eric Zumbrunnen e Jeff Buchanan (E); Arcade Fire(TS)


 Data de Lançamento: 13 de Outubro de 2013, no New York Filme Festival
  


Platão é um filosofo que dispensa qualquer tipo de apresentação, definiu em sua obra O Banquete, o amor é a eterna busca pelo que não temos, pelo além, pelo verdadeiro, enfim, pelo ideal. O amor para o mestre é a virtude, o puro, além do físico e de qualquer interesse passional, verdadeiras máculas. É a busca por algo transcendental, que leva à beleza e à contemplação. É algo extramundano, enfim. E é um dos temas da moderna fábula Ela, de Spike Jonze. Em um futuro não muito distante, Joaquin Phoenix vive Theodore,  um homem recém divorciado que trabalha escrevendo cartas de amor para casais ou famílias que não conseguem realmente expressar o que sentem. Solitário e magoado, compra um novo sistema operacional que promete ser mais que um gestor da vida pessoal de seu dono, mas um confidente, um analista. E assim conhece Samantha ( não só dublada como interpretada por Scarlett Johansson) a voz e inteligência artificial do software, com quem fica cada vez mais íntimo, até chegar ao ponto de se apaixonar por ela. 

  São tantos os temas que podem ser apontados em Ela que fica até difícil escrever sobre eles. O maior deles, obviamente, é a relação platônica que se desenvolve entre o homem e sua máquina. Platônica porque nada mais é que a busca de Theodore pela mulher ideal, uma vez que saiu de um relacionamento conturbado com uma pessoa que gostaria de passar a vida inteira junto. Vemos um ser humano completamente perdido pela dor e pelo vazio deixado, sendo viver o ideal a única saída que ele tem para voltar a ser feliz. Ora, o que é o amor ideal senão uma manifestação da individualidade de quem ama? É uma fantasia, um produto da imaginação como vários outros; nada mais, nada menos que uma projeção de como queremos que os outros lidem conosco. E isso ajuda, claro. Ajuda a refletir sobre o que vivemos anteriormente e porque isso não deu certo. O personagem do filme acaba por se reencontrar e por fazer uma auto-análise ao vivenciar toda a loucura de amar uma voz, um programa de computador. Ele só é o que é porque viveu um relacionamento, que apesar das desvantagens, o moldou; e percebe que tudo pode ter dado errado porque ele projetou no plano fático um ideal. Portanto, aí está uma das grandes sacadas do filme: não é uma simples história sobre o amor ideal, é uma análise reflexiva sobre esse ideal e sobre como ele pode influenciar nas nossas vidas. Não só isso, como todo relacionamento passado tem coisas boas e coisas ruins, e como cada um de nós cria para nós mesmos a história do que vivemos, uma seleção de memórias. Não só nos faz sentir todos os difíceis percalços que são os relacionamentos e nos faz refletir sobre eles o tempo inteiro. 
    
   Her, no original, também é uma ficção científica, e como todas, busca criticar algum vício moderno em torno da alegoria. Que alegoria? Nós realmente estamos vivendo uma época de relações sociais artificias. Ao mostrar um mundo frio e totalmente vazio, Spike Jonze nos leva a questionar toda a dependência para com a tecnologia, a busca por um retorno imediato, um conforto momentâneo e fugaz. Nada mais é que a relação de Theodore e Samantha: ela sabe tudo sobre ele a partir das informações e sensações que ele compartilha e dá a resposta que ele precisa ouvir. Mais uma vez vemos aí o amor ideal que nada mais é que o mecânico de uma gestão de informações e respostas rápidas; nada mais que um software mesmo. Há uma relação de dependência entre homem e máquina, o que não é recíproco, é simplesmente um processo criado por programadores. E o pior: Theodore não é o único que se encanta pelo programa. Toda sociedade está claustrofóbica e impessoal, anti-humana, que todos desenvolvem verdadeiros relacionamentos com seus respectivos softwares, é natural. Tão natural desejá-los que outros servem como intermediários sexuais entre a voz e o seu dono de carne e osso. Será esse o futuro negro que nos está reservado? Poderemos na era dos tablets e dos microssegundos reverter isso ou estamos fadados a uma dependência emocional para com as máquinas?

  São tantos questionamentos de rara beleza e inteligência que, incrivelmente, não perdem o lado sentimental. E muito disso se deve a Joaquin Phoenix, simplesmente primoroso. Detalhista em expressar os sentimentos de Theodore, nos conquista e emociona da primeira a última cena. Sofremos com ele, buscamos um novo sentido, uma nova cor na vida; nos encatamos com Samantha, nos decepcionamos, nos questionamos... tudo isso ligado a uma atuação arrebatadora, minimalista, real. Theodore é o nosso espelho, ou melhor, o espelho de nossas almas calejadas. Todos sofrem por amor, todos ficam presos a resquícios perdidos na memória e todos tem que lutar contra isso para superar. A sensibilidade que acompanha o trabalho desse brilhante ator é impossivel de passar desapercebida e de tocar os corações da platéia, uma verdadeira aula sobre a emoção sem precisar exagerar ou apelar. Scarlett Johansson é a voz... mas em nenhum momento percebemos ela como tal, isso seria simplista. É real, podemos sentir sua presença, imaginar seus traços como se estivesse onipresente durante a projeção, nos deixamos seduzir por ela em todas as suas nuances, suspiros e risos verdadeiros. É realmente apaixonante. E somente uma atriz de primeira linha poderia nos proporcionar uma gama tão extensas de emoções apenas pelo timbre, pela forma de se deliciar com as palavras. E é isso que ouvimos não só pelos sentidos, mas diretamente na alma, um trabalho de primeira, único e especial. Amy Adams está ali para nos lembrar que Theodore não é o único que passa por dificuldades e tem vazios existenciais, assim como também não é o único a se refugiar no alento de uma máquina, uma atuação discreta e igualmente tocante. Olivia Wilde e Rooney Mara vem pra nos mostrar, em quase pontas, o quanto superar o que deu errado é difícil e doloroso. 

A técnica, por sua vez, está a serviço do brilhante filme. A fotografia é intimista, está a serviço da atuação de Joaquin; mostra cada detalhe, cada expressão, cada passo da vida melancólica que ele vive. Está com cores mais escuras ou mais brilhantes, a serviço de seu estado de espírito; um contraponto também, em conjunto com a direção de arte, para mostrar o mundo cinzento em que a história se passa, e o calor da redescoberta do amor pelo personagem principal. Consegue um feito talvez inédito: a beleza total em uma cena de simples tela escura. O poder arrebatador da imaginação. A edição, brilhante, mostra flashbacks, visões de mundo e sensações, constrói Theodore assim como toda a lógica visual do filme. E claro, não podia faltar a minimalista e bela trilha sonora da banda canadense Arcade Fire, sob a batuta, claro, da alma de nosso anti-herói (ou simplesmente, nosso igual), denotando todas as sensações e maravilhas, a alma desse Ciryano de Bergerac pós-moderno. 

 Spike Jonze, o capitão, sempre criativo e surpreendente, não perde essa característica. No entanto, é crítico e ao mesmo tempo sensível; é um poeta e ao mesmo tempo cientista social. Não nos traz uma comédia romântica sobre o amor perfeito; uma ficção científica sobre os males da sociedade da informação ou um drama sobre o que perdemos pelo caminho. Ele nos traz um filme sobre a vida, não minha, não sua, mas de todas as pessoas, de seres humanos. E a vida não se explica racionalmente: tem que ser sentida, saboreada, vivenciada. Longe de melodramas, a tristeza existe; longe de hipérboles, o amor existe; assim como a dor; a alegria, o medo e a solidão. E sim, ele consegue nos fazer sentir isso tudo ao nos colocar sob a pele de Theodore, com sua câmera totalmente pessoal; nos fazer rir, nos fazer chorar, nos fazer viver. Mas vai além: racionaliza tudo sem perder qualquer sentimento, questiona o que vivemos, quem somos, o que podemos ser, o que idealizamos, como levamos nossos relacionamentos, o que tiramos deles... nos faz pensar. Pensar sobre a vida e refletir sobre o tudo, o universo. E como nos falou uma vez Eduardo Coutinho, falecido esse mês, grande é o cineasta que levanta as perguntas, e não aquele que nos dá a resposta. E é nesse casamento perfeito entre o coração e a razão que Jonze nos entrega Ela. Mais que um filme, uma obra que justifica o Cinema receber o nome de Sétima Arte. É um daqueles filmes que aparecem de tempos em tempos, revoluciona com uma temática ao mesmo tempo simples e densa. É a combinação perfeita e única entre poesia, crítica, prosa e estudo antropológico. 
Talvez nada dessa análise faça sentido, afinal, é uma experiência subjetiva única. Assista a Ela; se encante com Ela, refleta sobre Ela, se emocione com Ela, se envolva por Ela.... se apaixone por Ela. Afinal, a paixão é a única forma de loucura socialmente aceitável, até mesmo por uma inteligência artificial. Por que não por um filme? 

NOTA: é impossível mensurar essa obra de arte por um número e seria um pecado fazê-lo.




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