Uma forma de compreender o cinema, como sétima arte e como meio de diversão mais popular na contemporaneidade.
sábado, 5 de abril de 2014
Noé (2014)- Espelho da natureza humana
Nome Original- Noah
Diretor- Darren Aronofosky
Roteiro- Adaptado da história bíblica de Noé presente no livro do Gênesis; por Darren Aronofsky e Ari Handel
Elenco- Russel Crowe, Jennifer Connelly, Logan Lerman, Anthony Hopkins e Emma Watson
Parte Técnica- Matthew Libatique (F); Andrew Weisblum (E) e Clint Mansell (TS)
Data de Lançamento: 10 de Março, na Alemanha e no México
Em seu retorno às telas, o mestre das obsessões realiza o antigo projeto pessoal de fazer um épico bíblico, escolhendo, para tanto, a história da Arca de Noé; inovando um gênero que já foi carro-chfe de Holywood com densidade e muita reflexão. No entanto, nem tudo são flores...
O épico, na décadas de 50 e 60, a era de ouro de Holywood, e juntamente com o gênero musical e o western, reinou. Nesse reinado vimos grandes obras como Quo Vadis, Spartacus e Cleópatr; situadas na antiguidade histórica ou no Medievo, com seus eternos personagens maquinadores,romantizados em nome da arte. O gênero, igualmente, encontrou na Bíblia sua alma gêmea. Surge então o subgênero do épico bíblico, que tem como maior representante Ben-Hur, um dos 3 filmes recordistas de prêmios da academia com 11 estaturtas, assim como obras do cacife de Os Dez Mandamentos e O Manto Sagrado, imortalizadas. No entanto, como tudo que é bom acaba um dia. Não que isso tenha trazido ao cinema um período de trevas; pelo contrário: a realidade das ruas e noticiários ganhou espaço e, em nome de produções autorais, e o gênero foi reduzido a segundo escalão.
Porém, o gênero não morreu. Na década subsequente podemos encontrar boas obras, como o político Reds e algumas cinebiografias. Ressurgiu com força nos anos 90 e 2000 amparado pelo cinema de ação carente de boas histórias e brucutus; mas, infelizmente, as prodições de péssimo gosto e qualidade dominaram, sendo Gladiador, Coração Valente e 300 exceções ao mar de lama. Quando Darren Aronofsky, um diretor mais alinhado a uma linha alternativa e autoral, anunciou que iria filmar um épico bíblico sobre Noé o mundo do cinema se espantou; era um filme totalmente fora da curva de suas histórias de cunho psicológico. Ou será que não?
A primeira grande mudança no mito bíblico do homem que construiu uma arca para salvar a criação divina de um dilúvio destinado a limpar os males da Terra foi o plano de fundo. O mesmo se aprofunda na mitologia bíblica, trazendo anjos caídos, desolação e destruição da natureza e, principalmente morte. Se aprofunda também na filosofia: estamos diante de um estudo sobre o Estado de Natureza Hobbesiano, em que prevalece a lei do mais forte, a precariedade da vida, a ausência de segurança e a incapacidade do homem em se auto determinar. Esse foi o primeiro grande acerto da trama. O segundo, assim como a segunda revolução, foi a presença do tema da obsessão, carro chefe do diretor. Mas onde ela apareceria? Seria o filho do meio de Noé (Logan Lerman), obcecado por uma esposa? Ou nos homens que buscavam sobreviver ao dilúvio? Não, e, infelizmente, essas duas subtramas se unem em uma nova, de vingança, extremamente previsível (apesar de suscitar excelentes reflexões sobre o papel do homem na criação): ela aparece na própria missão do personagem título.
Noé (Russel Crowe), que sempre se considerou um homem bom por não descender da linhagem de Caim, que povoou o mundo com pecado e destruição, acaba por descobrir que o homem é naturalmente mal, apesar de seu dom para o bem. Portanto, a construção da arca, a ser preenchida com dois animais de cada espécie, seria uma forma de salvar a criação divina pura; e erradicar a impura, qual seja, o homem. Tal é a interpretação tomada pelo protagonista, que fica tomado por essa missão, nem que, para isso, tenha que passar por cima de sua família. É aí que reside a densidade do filme, é daí que sairá sua poderosa mensagem: na obsessão de Noé por cumprir o que lhe ordenou seu Pai e Criador, nem que tenha que ir as ultimas consequências e negar tudo aquilo que mais ama. No entanto, essa força narrativa apenas aparece no segundo ato do filme, ficando o primeiro ato, embora com excelentes cenas, prejudicado por uma grande lentidão e de conflitos realmente interessantes.
Essa falta de ritmo se deve muito a edição. Embora excelente no primeiro ato ao que tange as visões do personagem título, ela é arrastada e, as vezes, chega a lembrar cenas de documentários pobres que podem ser vistos no Discovery Channel; enquanto que no segundo ato é a catalizadora de todo o dinamismo da película. Assim também são os efeitos visuais, ora obsoletos e mal acabados, ora simplesmente brilhantes e artisticamente irretocáveis. Mas, tirando isso, os outros detalhes técnicos são irretocáveis: a fotografia, ora grandiloquente para exprimir a pujança dos anseios do Criador e da importância da missão de Noé, ora escura, fechada e intimista para retratar os conflitos internos dos personagens; a direção de arte impecável que dá um aspecto fantástico a trama; e a trilha sonora de Clint Mansell, inspiradíssima, um de seus melhores trabalhos sem sombra de dúvidas.
No que tange as atuações, temos um Russel Crowe simplesmente monstruoso em tela como Noé, que disseca todos os elementos desse conflito interno com uma maestria de poucos; criando um personagem denso, sombrio e inesquecível. Uma atuação única, poderosa, brilhantemente estruturada e icônica. Jennifer Connelly, especialmente na segunda metade do filme, mostra todo seu potencial dramático em cenas carregadas de emotividade sem sentimentalismos baratos. Logan Lerman mostra porque é um dos melhores atores da nova geração, com um excelente desenvolvimento de personagem, dissecando igualmente as dúvidas a que ele está submetido; no entanto, prejudicado, bem de leve, pelas escolhas do roteiro. As demais atuações, inclui-se ai a de Anthony Hopkins, são limitadas pelas escolhas da trama, e não fogem muito disso. Por outro lado, Emma Watson se mostra exagerada e extremamente caricata, abusando de caras e bocas, em uma atuação muito pobre.
Darren Aronofsky, em Noé, ficou longe de conceber seu melhor filme. Porém, não podemos negar que seus pontos positivos são variados: a trama não deixa de ser inventiva, seu carro-chefe, a obsessão está presente, afiadíssima como nunca; o elenco é acertado; as escolhas técnicas boas apesar de uma falha aqui e outra ali. É um filme ambíguo, apontado não só pelos seus atos distintos, como por sua mensagem: o homem é ao mesmo tempo bom e mau, e cabe ao próprio decidir qual caminho vai tomar. Funciona, conscientemente ou não, como um espelho dessa natureza humana.E, ao fim da projeção, chegamos à conclusão de que a missão de Noé, na verdade, é descobrir o poder do livre arbítrio, a maior dádiva dada por Deus aos homens. É uma mensagem poderosa e completamente alinhada ao espírito da Bíblia, apesar de toda a autoralidade aplicada à película. Assim, Aronofsky não só dá novos ares ao gênero, mas mostra, negando o que havia sido constatado nos tempos idos do cinema de autor, que o bíblico e o inventivo podem andar de mãos dadas.
NOTA: 7,5
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