sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A Menina que Roubava Livros (2013)- Ou a Matéria, o Poder e a Forma de um Melodrama

  A adaptação do célebre best-seller de Markus Zuzak até que tenta mostrar algum conteúdo para além de uma história, como tantas outras, acerca da Segunda Guerra Mundial; no entanto, falha, buscando apenas uma coisa de seus espectadores: cachoeiras de lágrimas. 


Nome Original- The Book Thief 

Diretor- Brian Percival 

 Roteiro- Adaptado por Michael Petroni, baseado em livro homônimo escrito por Markus Zuzak 

Elenco- Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson, Ben Schnetzer e Nico Liersch


Parte Técnica- Florian Ballhaus (F); John Wilson (E) e John Willians


 Data de Lançamento: 27 de novembro de 2013, nos Estados Unidos e Canadá 


 


  Hollywood, não só no cinema, mas igualmente na TV, tem se tornado cada vez mais dependente das adaptações literárias. Claro, tais obras trazem um retorno certo, aqueles que cultuam sua forma escrita são figuras certas nas salas de cinema do mundo inteiro, seja para apreciar o trabalho que foi feito ou para criticá-lo porque não foi uma transmissão ipsis literis do livro para as telas (sendo esse segundo comportamento, irritante e burro por sinal, o mais comum). E entre erros e acertos tem vivido os grandes estúdios: alguns, como Jogos Vorazes, Harry Potter e Senhor dos Anéis alcançaram aplausos e públicos invejáveis; outros como Crepúsculo e Crônicas de Nárnia foram sucessos de bilheteria apesar do tremendo insucesso com os especialistas; por fim, filmes como Ender's Game e Cidades dos Ossos foram verdadeiros fiascos.

  Ao colocar suas mãos nos direitos de A Menina que Roubava Livros, uma obra aclamada pelo público e crítica, considerado por muitos um clássico moderno, os Estúdios Fox esperavam alcançar o primeiro grupo, detonar as bilheterias, concorrer a prêmios, ser uma unanimidade dentre os especialistas. A história sobre Liesel, sua família e o judeu escondido em seu porão em uma Alemanha dominada pelo Nazismo e assolada pela guerra é um tiro certeiro, com toda certeza vai se tornar uma indelével obra da sétima arte. Com um material original desses em mãos, o que pode sair errado? Bem, ao que parece, tudo. Os críticos o consideraram mediano, as grandes premiações o esnobaram. O público tende a crescer, uma vez que ainda não foi lançado em muitos mercados europeus e na América Latina, mas é bem tímido para um filme lançado a quase dois meses nos EUA. Como isso é possível? Justamente a adaptação para as telas, e aqui a comparação é incomparável, não apresenta a carga de conteúdo do livro.

  Obviamente esta é uma analise do filme, portanto, o livro fica para outro momento. E, como é uma mídia diferente, deve o filme funcionar independente de seu material original, ser minimamente compreensível. Não, ninguém  é obrigado a ler o livro que deu origem à película. Nisso o filme acerta (caso contrário, seria um verdadeiro desastre). E acerta também na trama envolvendo o judeu abrigado pela família de Liesel. E é nesse momento da narrativa que temos um bom desenvolvimento do suspense, um belo relacionamento entre o fugitivo e a personagem título e a mensagem da obra: palavras são poder. Mas melhor parar por ai com os elogios. A mensagem que o filme quer nos passar é desenvolvida de uma forma superficial, simplesmente em uma ou outra cena de rara beleza, ficando totalmente esquecida no restante da película salvo momentos pontuais, mas sem a mesma vivacidade: a graça é ver Liesel e Max, seu companheiro. Era esse momento que deveria tomar a maior parte do tempo em tela. Nem mesmo a tensão da quase descoberta de Max, não, é seu relacionamento com a menina ladra de livros, são seus debates quase poéticos, a beleza que se esconde na descoberta das palavras, é isso que o filme tem que desenvolver.Entretanto, entram o melodrama e o choro exagerado  em cena, e estes, infelizmente, tomam conta da obra. São tantas situações que tentam arrancar as lágrimas do espectador, por qualquer motivo, artificiais, forçadas. São lágrimas e mais lágrimas dos personagens que acabam por limpar também qualquer emoção que possa sentir o espectador: é uma grandiloquência desnecessária, que vai de encontro à alma poética que a obra poderia vir a ter, tenta atingir a catarse em qualquer situação e quando poderia conseguir simplesmente nada provoca. Na busca incessante por preencher os corações da platéia acaba por alcançar um imenso vazio.


   Mesmo que presos a esse roteiro extremamente folhetinesco, o elenco faz um bom trabalho. A revelação Sophie Nélisse consegue fazer uma personagem título tímida e poderosa em alguns momentos, passando por todos os arcos narrativos, infelizmente, sendo forçada a cair no melodrama. Outra revelação, Nico Liersch, faz Rudy, melhor amigo de Liesel, tem um excelente papel como alívio cômico e só, sendo bem fraco quando descamba para o drama. O sempre excelente Geoffrey Rush faz um papel tocante como o pai de Liesel, um homem no meio de tantos déspotas nazistas. Mas os louros da grande atuação ficam com Emily Watson, que imprime uma profundidade ímpar a mãe de Liesel, uma mulher durona, forte e desbocada mas que não consegue esconder toda sua bondade e carinho, por mais que tente; e Ben Schnetzer, que faz Max, o judeu, um personagem de primeira estirpe, que, mesmo no horror em que vive tenta buscar a beleza e a poesia nas palavras. Uma atuação fantástica e inebriante a ser lembrada em um filme tão apagado.

  Tecnicamente a obra tem também seus méritos. A direção de arte é primorosa, nos mínimos detalhes, nos joga na Alemanha Nazista em toda sua monstruosidade e claustrofobia. A edição dita um excelente ritmo ao filme, marcando passagens temporais ou ajudando a narrativa em off (que só aparece quando conveniente, bem diferente de um Scorcese ou Tarantino) e os 130 minutos de projeção não cansam. A fotografia ora é grandiosa, com grande trabalho de planos abertos e cores pouco vivas; ora é intimista, trabalhando em prol dos exageros dramáticos que o filme, infelizmente, desenvolve; ficando um pouco a desejar e não passando de correta. John Willians assina uma trilha inspirada e nos lembra, mais uma vez, porque é um dos melhores de Hollywood e da história da sétima arte.


  Por fim, temos o trabalho de direção. Brian Percival é um realizador saído da TV, o que denota o porque da opção por arcos mais melodrmáticos e extremamente emotivos, quase uma novela, do que por um filme que se aprofunda nas idéias que apresentou como um aperitivo. Um Spielberg, por exemplo, seria o nome mais indicado para obra: além de um grande gênio das boas histórias, sempre soube usar a emoção sem exageros e nos momentos certos, realmente provocando reações e choros inesperados na platéia. Faltou experiência e, principalmente, saber o caminho das pedras ao diretor. Quis mais, quis arrebatar o público, tecer cachoeiras de lágrimas, uma busca quase obsessiva por isso, especialmente no ultimo ato de filme. Conseguiu de alguns mais sentimentais, obviamente, mas infelizmente caiu no exagero, no desnecessário. Tomando a liberdade de modificar uma das frases mais geniais do cinema, proferida pelo personagem Roy Batty, de Blade Runner, fruto de um improviso de seu intérprete, Rutger Hauer, concluo essa resenha: vi em A Menina que Roubava Livros uma trama de primeira, com uma mensagem positiva  e boas situações dramáticas; porém tudo foi perdido em nome do choro, como lágrimas na chuva.

NOTA: 6

domingo, 26 de janeiro de 2014

Os Melhores do Ano de 2013

  Chegamos na temporada de premiações no cinema, aquele momento do ano em que todos estão ligados em Hollywood para saber quem e quais filmes os representantes da indústria cinematográfica vão escolher como os melhores. E, aqui nas terras tropicais, o circuito do Oscar começa esse fim de semana com Lobo de Wall Street e só termina no carnaval, com 12 Anos de Escravidão, para que, no domingo da festa da carne, possamos dar nossos pitacos e fazermos apostas sobre os melhores. Mas o ano que passou vai muito além de qualquer Oscar, muitas obras, inclusive, foram esquecidas pela Academia. Como forma de reparar injustiças e fazer um balanço geral, o Cinema tem Duas Faces decidiu fazer sua premiação, indicando quais os melhores filmes lançados no Brasil em 2013, assim como os melhores em categorias específicas. Sim, a regra é: deve ter sido lançado no Brasil no ano que passou. Temos portanto, obras de 2013 e de 2012 que apareceram por aqui, algumas, inclusive, que foram laureadas por Oscar e Globo de Ouro ano passado. Aí vai a lista:



Melhor Fotografia

Rush- No Limite da Emoção - por Anthony Dod Mantle


 
  Esporte é emoção. Aqueles com carros de alta velocidade, adrenalina pura. Ao realizar um filme que envolve a Fórmula 1, esses elementos são, obviamente, obrigatórios. E o trabalho de câmera de Rush é o anzol para capturá-los. Aliada a também excelente edição, a fotografia capta os carros em seus minimos detalhes, a visão dos pilotos, as corridas emocionantes. Do cockpit às pistas; dos olhos de Nikki Lauda e James Hunt as tomadas aéreas o filme acerta em cheio, criando o clima da alta velocidade. O uso de cores vibrantes ou mais escuras também é um outro acerto, captando bem  o estado de espírito das grandes figuras nele retratadas. Um trabalho de arte com função narrativa e, fatalmente, um catalizador de expectativas e vibrações na platéia. 

Menções Honrosas:

A Vida Secreta de Walter Mitty- Stuart Dryburgh
Gravidade - Emmanuel Lubezky
Os Suspeitos - Roger Deakins
Django Livre- Robert Richardson




MELHOR EDIÇÃO

A Vida Secreta de Walter Mitty - por Greg Heyden 

 São dois os méritos da brilhante edição de A Vida Secreta de Walter Mitty. O primeiro, permitir que se construa um personagem título admirável. Com cortes bruscos, entramos na mente de Walter e nas mais absurdas e engraçadas situações de puro sonho acordado. A surrealidade das situações vem como um verdadeiro choque. No entanto, o segundo mérito e seu maior acerto, é a ausência de cortes e a opção por uma narrativa linear, algo menos impactante do que é mostrado anteriormente; técnica que nos faz questionar o que é imaginação e o que é real. E nisso reside a grande magia dessa inebriante obra. 

Menções Honrosas

Os Suspeitos- Joel Cox e Gary D. Hoax

Rush- No Limite da Emoção- Mike Hill e Daniel P. Hanley
A Grande Beleza- Cristiano Travagliogli 
A Hora Mais Escura- Willian Goldenberg e Brian Tichenor 





MELHOR TRILHA SONORA

Círculo de Fogo- por Ramin Djawadi 


    O grande objetivo desse moderno Tokusatsu de Guillermo del Toro é promover uma regressão à infância, onde monstros e robôs viviam em sua guerra perene no imaginário. E, obviamente, a trilha sonora tem um grande papel nisso. Ramin Djawadi  acerta em cheio nas suas escolhas harmônicas, numa mistura do clássico com o eletrônico moderno, ligados por riffs espetaculares de guitarra. A trilha pontua bem a narrativa, lembrando as melhores do gênero aventura: é mais melancólica para retratar a tristeza, suave para a tensão, animada e circense para o alívio cômico e explosiva nos momentos chave de ação. Se tudo na infância aparenta ser épico quando se trata de grandes embates fictícios, a trilha sonora atinge essa qualidade em diversos momentos da película, e faz com que a criança adormecida dentro de cada um de nós dê o veredicto sobre seus acordes: simplesmente animal. 

Menções Honrosas:

Rush- No Limite da Emoção - Hans Zimmer

O Mestre- Jonny Greenwood
Django Livre- Vários Artistas
Jogos Vorazes: Em Chamas- James Newton Howard



MELHOR ATUAÇÃO FEMININA

Emmanuelle Riva - Amor


  Existem atuações que, independente dos prêmios que possam ganhar, estão um patamar acima de todas as outras, e se inscrevem na história do cinema como uma verdadeira referência. Emmanuelle Riva atingiu tal grau de excelência em Amor. Calcada em pura expressão corporal, a atriz logrou demonstrar as etapas de uma doença sobre o ser humano: o inicio com a perda de alguns dos movimentos do corpo, o desgaste facial que mostra a vitória da morte sobre a vida. Sua atuação é carregada de um intenso simbolismo sobre o quão frágil é o ser humano. E fica ainda mais impactante quando vemos a atriz gozando de boa saúde: a verossimilhança passada nas telas é impressionante, de tirar o fôlego. Sem mais rodeios, uma atuação que merece o título de monstruosa, sem perder, claro, a beleza e a sensibilidade.

Menções Honrosas:
Léa Seydoux - Azul é a Cor mais Quente
Adele Exarchopoulos - Azul é a Cor mais Quente
Meryl Streep- Álbum de Família
Jessica Chastain- A Hora Mais Escura


MELHOR ATUAÇÃO MASCULINA

Leonardo DiCaprio - Django Livre


   Django Livre é um filme que trabalha em metalinguagem com o mito de Siegfried. Esse, para salvar Broomhilda, sua amada, enfrenta um terrível dragão. Na transposição para a América Escravocrata, Tarantino transformou o mitológico monstro em Calvin Candie, grande senhor de terras e sádico senhor de escravos. E, graças a Leonardo DiCaprio, este se tornou tão explosivo quanto um verdadeiro dragão. Na melhor atuação de sua carreira, o ator cria uma verdadeira aberração humana coberta por um véu de falsa civilidade. Uma metáfora ambulante do pensamento da época, em que os ricos andavam sobre vidas humanas, bens descartáveis; ao mesmo tempo que eram considerados verdadeiras torres de refinamento . Passeando por essas nuances, DiCaprio rouba todos os holofotes:  mesquinho, cruel e sagaz, um personagem tarantinesco de cores negras e envolto nas trevas de seu tempo e do obscurantismo intelectual que o dominava. Chega ao limite do sacrifício em nome do personagem quando realmente machuca a mão em uma cena e utiliza esse inesperado elemento como base para um genial improviso. Só isso, por si, valeria todos os prêmios e honras possíveis. 

Menções Honrosas:

Daniel Brühl - Rush- No Limite da Emoção
Jean-Louis Trintignant- Amor
Hugh Jackman- Os Suspeitos/ Os Miseráveis
Joaquin Phoenix- O Mestre

MELHOR ELENCO 

Django Livre - Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Samuel L. Jackson e Kerry Washington


  Os personagens de Quentin Tarantino são como peças de xadrez: cada qual tem sua função, cada qual se move de maneira "x" ou "y"para atingir os seus objetivos. E isso fica bem claro em Django Livre. Cada ator tem uma função definida e a representa com grande louvor na trama: Christoph Waltz ou King Schultz representa a moralidade que se revolta contra a barbárie escravocrata; escondida sob a máscara da verdadeira civilidade, sendo brilhantemente personificada em Kalvin Candie, o genial DiCaprio. Stephen, Samuel L. Jackson, representa a corrupção do poder, que seduz o oprimido e o faz pensar que é parte essencial de sua estrutura; em uma atuação irretocável baseada na falsidade do personagem.  E onde entre Jamie Foxx, o personagem título? Ele é o herói clássico, o fio condutor dessa brilhante narrativa. Não é profundo como os outros, é a força da vingança, é a necessidade do elemento tradicional em meio a tantas metáforas. Ele aprende com a moral, porém, quando se desprende da mesma para salvar a donzela em perigo, enfrentando o fogo do dragão, atinge o épico em pura explosão cinematográfica. E são suas aspirações, cristalinas como água, estampadas tal qual tatuagem no rosto de seu intérprete, que o fazem um personagem único. 

Menções Honrosas:
Os Miseráveis - Hugh Jackman, Anne Hathaway, Russel Crowe, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Sacha Baron-Cohen, Helena Bonham Carter e Samantha Barks 


O Lado Bom da Vida- Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Robert de Niro, Jackie Weaver, Chris Tucker e Anupam Kher

Álbum de Família- Meryl Streep, Julia Roberts, Ewan McGregor, Chris Cooper, Abgail Breslin, Margo Martindale, Julliete Lewis, Julianne   Nicholson e Benedict Cumberbatch 

Os Suspeitos- Hugh Jackman, Jake Gyllenhaal, Paul Dano, Viola Davis, Maria Bello, Melissa Leo e Terrence Howard 


MELHOR DIRETOR

Quentin Tarantino - Django Livre




  O rei das referências ousou. Tocou numa ferida, num tabu norte-americano. E criticou as origens de toda uma cultura de preconceito ainda não superada. E misturou o black com western em uma explosão de metáforas, sons e cores . Não seria exagero afirmar que este é o seu melhor filme. Os homenageados por sua lente e referências, dentre eles Sergio Leone, Sergio Corbucci, John Ford seguramente voltaram ao mundo dos vivos e saíram satisfeitos com o que viram. É uma obra que tem o espírito de Hollywood, por tratar do gênero americano por excelência e não esquecer que cinema é entretenimento; no entanto, se aproxima muito da direção européia, sem papas na língua; que tanto inspiraram o gênio por trás da câmera, ao escancarar uma história que poucos querem contar. Maduro como diretor, Tarantino finalmente encontrou sua "alma gêmea" nos gêneros cinematográficos e já prometeu amor eterno. 

Menções Honrosas:

Abdellatif Kekiche - Azul é a Cor Mais Quente
Paolo Sorrentino - A Grande Beleza 
Tom Hooper- Os Miseráveis
Dennis Villeneuve - Os Suspeitos 


TOP 10 FILMES DO ANO

10- Jogos Vorazes: em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire- 2013)- Dir. Francis Lawrence




   Na lógica do universo de Jogos Vorazes, toda revolução começa com uma fagulha. Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) foi essa fagulha. E para a população oprimida de Panem, tornou-se um símbolo de que a mudança é possível, de que a opressão pode ser combatida. E para o governo, um verdadeiro incêndio que deve ser contido. Se a crítica do filme predecessor foi contra o entretenimento predatório que temos em nossa sociedade, a continuação aprofunda no político e na sociedade vigiada, trazendo um clima orwelliano para as novas gerações. A heroína, frágil e traumatizada em seu interior, é vista pelo status quo como o mais poderoso dos inimigos, lançando mão de um subterfúgio radical para destruir tudo o que ela simboliza: eliminar todos os vencedores dos Jogos Vorazes. Jennifer Lawrence disseca todas as nuances do personagem, em uma atuação brilhante (e, diga-se de passagem, bem superior aquela que lhe rendeu um Oscar), dividindo espaço com excelentes coadjuvantes, especialmente Donald Sutherland, seu nemesis; e Jena Malone, a insana Johanna Mason. Em tempos de crise das adaptações de obras juvenis para o cinema, Em Chamas chega com tudo: é o melhor blockbuster do ano, é político, tem conteúdo e é incendiário; tudo na medida certa. 


9- A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty- 2012)- Dir. Kathlyn Bigelow



  Mais que a história da missão que matou Bin Laden, A Hora Mais Escura é um verdadeiro documentário. É um mergulho  técnico na investigação da CIA em todos os seus aspectos. E essa detalhada inserção na metodologia é de extrema importância para que se compreendam as motivações de Maya, a agente protagonista. A atuação brilhante de Jessica Chastain é outro trunfo do filme: sua determinação e a perda da própria vida em nome de uma obsessão tornam Maya uma personagem poderosa e, ao mesmo tempo, humana.  A  verossimilhança gera a ilusão de que estamos diante dos arquivos confidenciais do serviço secreto americano. Tal realismo é reforçado pela apurada fotografia e a ausência de trilha sonora. Por fim, vale ressaltar a excelente montagem, que dividiu o filme em capítulos e assim garantiu seu excelente ritmo, extremamente fluido. Ficamos completamente seduzidos pela trama e afoitos pelo que ela tem a oferecer. Sóbrio e elegante, é um exemplo de cinematografia de mestre, desenvolvido com perspicácia e muito apreço pela melhor técnica possível. Kathlyn Bigelow acerta em cheio e mostra ao mundo todo o seu potencial como realizadora. 

8 - O Mestre (The Master- 2012) - Dir. Paul Thomas Anderson



  A dominação e o poder são os temas da nova obra de Paul Thomas Anderson. Com direção segura, sempre pautadas com belas cores e sons inquietantes, desenvolve-se a trama entre o criador de uma seita religiosa (Phillip Seymour Hoffman) que tenta provar suas teses ao tentar disciplinar um animalesco homem (Joaquin Phoenix). Porém, a situação sai de controle, e não se sabe mais quem é o mestre quem é o dominado, um influencia o outro para seu lado, ora racional, ora bestial. Joaquin Phoenix, brilhante como sempre,  age como um símio, a fera que deseja ser contida, o animal que quer ser domesticado, mais como forma de agradecimento ao mestre que o acolheu do que por outros motivos. Phillip Seymour Hoffman é o domador que se contamina pela bestialidade, se vê na fera e explode em impulsos irracionais. Amy Adams, em uma atuação discreta e magnética, e mostra onde o poder verdadeiramente reside. Um filme intrigante sobre o animal que temos dentro de nós, dominado ou não.



7- Os Miseráveis (Les Misérables- 2012)- Dir. Tom Hooper



   O gênero musical, até a década de 60, reinou quase soberano em Hollywood. Com seus temas românticos e fantasiosos, era um excelente catalisador das mais diversas fantasias, e serviu para lançar grandes talentos tanto da direção, como Vincent Minnelli e Robert Altman, como grandes artistas, como Gene Kelly, Julie Andrews e Judy Garland. Porém, veio a década de 70 e a necessidade de sair dos estúdios para retratar a realidade. O gênero perdeu seu espaço, e mesmo seu último suspiro, Cabaret  de Bob Fosse, se imiscuiu com o pensamento dominante. Virou quase um subgênero, com produções fracas e sem qualquer apelo com o público. Tentou um retorno no início dos anos 2000 com Moulin Rouge e Chicago, banhado em cultura pop, reconquistando o público. O problema foi a baixíssima qualidade do que veio depois. Até que Tom Hooper, diretor do irretocável O Discurso do Rei,  decidiu revolucioná-lo. E como veio essa revolução? Se reaproximando do teatro musical: as músicas não seriam mais gravadas e posteriormente dubladas pelos atores, seria cantada ao vivo, com a câmera ligada, pescando toda a interpretação da mesma. A fotografia em close up aproxima o personagem do espectador, se torna intimista. O elenco, afinado e de qualidade ímpar, com grandes nomes tanto de Holywood quanto do teatro musical. O resultado: uma explosão de sentimentos que envolve o espectador, uma obra de arte irretocável.

6- A Vida Secreta de Walter Mitty (The Secret Life of Walter Mitty- 2013)- Dir. Ben Stiller 


   
  Em algum momento de sua vida, você já viu esse filme. Já viu seus clichês, suas obviedades, seus traços marcantes. E não deixou de se encantar com ele da mesma forma. O que parece óbvio para o espectador não é para o personagem título. Ora, você sabia onde estava o negativo com a foto que retratava a quintessência da vida desde o início. Walter Mitty, quem sabe, também. Mas ele preferiu acreditar que não para buscá-lo, numa jornada por toda a fantasia  e a maravilha de viver que lhe foram tiradas quando ele era um adolescente. E é nesse caminho entre o idílico e o real que acompanhamos nosso herói, a busca de sua própria essência. Com uma fotografia e uma edição que nos impedem de identificar o que é real e o que é sonho, ou cria paralelos interessantes entre o poder da mente e a normalidade do mundo exterior, acompanhamos esse enredo em que a jornada é muito mais importante que o resultado. Livre-se dos preconceitos que tem contra Ben Stiller, diretor impecável e ator lírico nessa e em outras obras, atenda ao chamado da aventura para descobrir que a quintessência da vida é, no fundo, aproveitá-la da melhor maneira possível. 

5- A Grande Beleza (La Grande Belleza- 2013) - Dir. Paolo Sorrentino


  
 Irei poupá-los de um parágrafo extenso sobre esse filme, afinal, a análise do mesmo já foi feita aqui no site. Paolo Sorrentino expõe a purulenta hipocrisia da sociedade italiana e a busca da essência do eu. Infelizmente, vivemos num mundo onde a aparência é melhor que a essência, e esta deve ser esquecida em nome da imagem. Contrariando os prognósticos de sua classe social, Jep Gambardella, interpretado pelo brilhante Toni Servillo, tenta se reencontrar. Em meio a quedas de mascarás, percebemos que os intelectuais que o cercam são puro nada, tristes e vazios em seu interior. Na busca pelo verdadeiro eu, a arte desempenha papel fundamental como sua objetificação. A verdade está na beleza do que pode ser produzido ao ser você mesmo. Em tons Fellinianos percebemos que nem tudo é o que parece, e que o genuíno é belo. E, nos tempos modernos, essa é uma lição valiosa.

4- Rush- No Limite da Emoção (Rush- 2013)- Dir. Ron Howard



   Filmes com temática esportiva normalmente caem nos clichês habituais do gênero como superação e acreditar em si mesmo, salvo raríssimas exceções. E um filme sobre Fórmula 1, aquele esporte chato das manhãs de domingo, como poderia fugir disso e se tornar interessante? Ora, com uma cinebiografia sobre uma rivalidade: a entre Niki Lauda e James Hunt. Ron Howard, perito quando se trata do gênero, afinal, nos presentou com o excelente Uma Mente Brilhante, assumiu essa missão, apresentando um filme grandioso. E três são o elementos que levam a isso. O primeiro deles é a a parte técnica do filme: a fotografia em aliança com a edição nos envolve em toda a voracidade do esporte em questão na época em que passa o filme, sua adrenalina, sua emoção, seus riscos; a direção de arte é impecável, uma verdadeira imersão nos anos 70; a trilha sonora de Hans Zimmer, clássica e grandiloquente.O segundo deles, o roteiro, que retrata a rivalidade não só pontuando as diferenças entre os personagens, mas buscando ao máximo seus pontos comuns: ambos são obstinados, teimosos, guerreiros a seu modo, figuras que geram imensa admiração; são também altivos, soberbos e egoístas, o que dá uma sensação de repulsa. O terceiro e ultimo, as escolhas do casting: Chris Hemsworth mostra porque é uma estrela em ascensão e faz um excelente James Hunt; Daniel Brühl confirma o seu talento ímpar e atinge o sublime como Niki Lauda.

3- Os Suspeitos (Prisoners - 2013) - Dir. Dennis Villeneuve 


  "Não enfrentes monstros sob pena de te tornares um deles, e se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla",disse, certa vez, o filósofo Friedrich Nietzsche. Talvez essa seja a maior mensagem do fantástico thriller de Dennis Villeneuve. Quando a fé na justiça dos homens falha, Keller Dover (Hugh Jackman) busca fazê-la com suas próprias mãos, sequestrando o único suspeito do rapto de sua filha (Paul Dano), se tornando o monstro que busca combater. Com uma edição de mestre e tons escuros em sua fotografia, o diretor nos envolve como verdadeiros reféns na tensão e no mistério. Cada detalhe é essencial para a compreensão do resultado, que não poderia ser menos que magnífico, lembrando muito Clint Eastwood em seu clássico Sobre Meninos e Lobos. E abre espaço para uma série de reflexões: a moralidade deve seguir necessariamente a legalidade? O desespero é a justificativa para atitudes deploráveis? Os fins justificam os meios? Existe bondade no mal que fazemos aos outros como forma de proteger o que há de mais precioso em nossas vidas? Hugh Jackman, envolvido em fúria e impotência faz algo inédito em sua carreira, bestial, magnético, destrutivo, no papel desse pai desesperado. Jake Gyllenhaal é o detetive responsável pelo caso, o contraponto perfeito, sentimental sem perder a razão, preso ao método e a moral para resolver o caso. Por fim, Paul Dano, mais uma vez primoroso, é a vítima ou o vilão que dividirá nossos corações e mentes nessa busca vertiginosa e assustadora da verdadeira justiça.

2- Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d'Adele - 2013)- Dir. Abdellatif Kekiche 



  Pessoas que definem Azul é a Cor Mais Quente como "um filme de lésbicas" demonstram o quão simplistas e preconceituosas são. A grande temática do filme é o amor, e esse não escolhe raça, religião e gênero, é a mais pura manifestação do espírito, engrandecedor. Numa construção de personagem rara no cinema, vemos a descoberta, a dor, e tudo aquilo que envolve a difícil passagem da adolescência para a idade adulta, bem menos romântica e aberta à imaginação; acompanhada da grande lição da película: afinal, o que é a busca pelo amor senão a busca por si mesmo? As câmeras acompanham Adele e atravessam sua aparência para mostrar ao espectador sua alma turbulenta. Ela é bela, porém insegura, solitária, indecisa, se descobre aos poucos como algo além, perdida em meio a pensamentos e dúvidas que assombram qualquer jovem. Emma, sua contraparte romântica, é o fogo, o novo que chega com cabelos azuis hipnotizantes para seduzir a todos: segura de si, inteligente, poética... um verdadeiro furacão de paixão. Abdellatif Kekiche tem todos os méritos de mostrar a intensidade e as nuances dessa relação, ousando por muitas vezes na projeção sem perder a poesia que ela demanda e atinge. Léa Seydoux e Adele Exarchopoulos são as musas que nos conduzem com força, delicadeza e perfeição a um mergulho no azul oceano da beleza cinematográfica, e nos ensinam uma nova forma de ver o amor. 

1- Django Livre (Django Unchained- 2012)- Dir. Quentin Tarantino 



  Ao longo da "premiação" tudo já foi dito sobre Django Livre.  Tarantino colocou o dedo na ferida mais suja dos norte americanos e decidiu irromper com o tabu, mostrando que até os erros históricos tem de ser escancarados. E, no caso, pintados de um vermelho sangue, mostrados na estética perfeita atingida pela fotografia, barulhenta na união de Morricone com 2Pac. Ao diretor já foram dados os devidos aplausos pela ousadia e por ter conseguido atingir o melhor em seu apuro técnico. O mesmo ao elenco, com química perfeita e sublime em suas atuações. Metáforas, ação, aventura, crítica, barbárie e um exercício metalinguístico compõe esse Western Spaghetti com toques afro-americanos dos filmes dos anos 70 de Black exploitation. Entre Shaft e Franco Nero, o personagem título destila as aspirações clássicas de vingança em um mundo mesquinho e sem moral. E o filme atinge o status de obra prima contemporânea por todo esse conjunto de elementos bem amarrados. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Lobo de Wall Street (2013)- Sexo, Drogas e Dinheiro

  Scorcese volta a sua antiga estrutura narrativa para contar a opulenta vida de um Yuppie sem limites. O resultado é bem satisfatório, embora o filme peque em elementos essenciais da excelente filmografia do diretor. 


Nome Original- The Wolf of Wall Street

Diretor- Martin Scorcese

 Roteiro- Adaptado por Terence Winter, baseado em um livro de mesmo nome escrito por Jordan Belfort

Elenco- Leonardo DiCaprio, Matthew McConaughey, Jonah Hill e Margot Robbie


Parte Técnica- Rodrigo Prieto (F); Telma Schoonmaker (E)


 Data de Lançamento: 25 de dezembro de 2013, nos Estados Unidos, Canadá e Europa






  Goodfellas ou, na tradução nacional, Os Bons Companheiros, é, quiçá, o melhor filme do gênero de máfia da história do cinema. Nele, Martin Scorcese busca a realidade das ruas de Nova York, retirando todo o romantismo e qualquer moral que os filmes lançados anteriormente desenvolveram. Ao mostrar a vida como ela realmente é criou uma obra prima, marcada por uma estrutura narrativa muito peculiar, personagens diversificados e com aspirações bem distintas, tristes almas perdidas entre códigos de conduta e desejos pessoais, todos bem interpretados por um elenco de primeira qualidade com nomes como De Niro, Joe Pesci, Paul Sorvino e Ray Liotta. Em O Lobo de Wall Street, o diretor retorna a essa estrutura, e em uma nova parceria com Leonardo DiCaprio, entra no imoral mundo dos corretores de ação.

  O filme conta a história de Jordan Belfort, um ambicioso corretor de ações que quer ser rico. Com o tempo, aprende os macetes do mercado e como ludibriar pessoas a comprar pencas de ações baratas e sem nenhum retorno. Acaba por construir sua própria agência juntamente a outros corretores igualmente inescrupulosos, um polo para pessoas que querem ficar ricas do dia para a noite, construindo um verdadeiro império de especulações e operações ilegais. Com o dinheiro vem a ostentação: carros, prostitutas, orgias, gastos exorbitantes em luxos sem o menor sentido, iates, drogas... Uma vida sem regras e sem limites que contamina a todos com loucura e insatisfação com o que se ganha. O mais vira um mantra, e o assim intitulado Lobo não consegue perceber que tudo tem uma consequência.


  O grande trunfo do filme justamente é introduzir o espectador nesse vórtice de loucura e imprevisibilidade, nos vícios e no caminho de pura imoralidade que é traçado pelos personagens. Há uma apreensão no ar quanto qual é a próxima excentricidade que gerará risadas, o próximo exagero que deixará os queixos caídos ou simplesmente o momento em que tudo vai começar a dar errado. Tudo isso pautado por diálogos deliciosos que sempre carregam consigo uma carga de nonsense ou simplesmente situações extremamente cômicas de tão absurdas e irreais que são.

  No entanto, seu grande pecado é, justamente no seu desenvolvimento de personagens. Pode até ser que o objetivo de Scorcese, ao falar de uma sociedade em que o ter é mais importante que o ser, leve a isso; mas sua "fauna" fictícia é muito rasa, unidimensional, superficial, o que é muito estranho se comparado com qualquer obra do diretor. A culpa não é dos atores, longe disso, como será dissertado no momento oportuno; mas sim do roteiro, que limita, inclusive, as possibilidades interpretativas.  Não existe nada que se assemelhe a um Travis Bickle e a sua ânsia pelo fim de uma sociedade nojenta e imoral ; um Jake La Motta que pensa que tudo se resolve na base da força; um Hugo Cabret e sua busca pela magia ; ou até mesmo Jesus Cristo, perdido na dor de ser Deus e um simples homem. São todos iguais: esbanjões, descompromissados com o futuro, intangíveis pela lei, devassos, depravados, drogados; não vemos qualquer personagem que seja um ponto fora dessa curva de luxúria.


   As atuações, como dito acima, ficam presas a esses limites impostos pelo roteiro. Mas mesmo assim não deixam de ser espetaculares. Leonardo DiCaprio confirma sua excelente fase que já deve ter uns 10 anos e atinge o ponto ideal no overacting. Exagerado, explosivo, louco, viciado, usa e abusa das expressões corporais para atingir, mais uma vez, uma atuação primorosa. É a alma do filme, desvairada como ele pede, imprevisível segundo as suas vicissitudes, insano dentro da temática trabalhada. Atinge uma veia cômica nunca antes vista em suas hipérboles e quebra a quarta parede com uma tijolada certeira e um ar de cinismo e pura altivez boçal. É desumano em nome do ter, deplorável na sua febre do ouro e perdido em uma vida sem qualquer valor onde tudo é mercantilizado. Um papel, como dito antes, limitado e ao mesmo tempo muito delicado em seus momentos de quebra da normalidade, uma vez que um passo em falso poderia significar o fim do que há de bom no filme. Jonnah Hill volta as origens de Superbad e da comédia pastelão para fazer o primeiro companheiro de Belfort na sua vida de loucuras, protagonizando cenas clássicas de comédia hollywodianas e arrancando gargalhadas sinceras de seu público. Os outros coadjuvantes, alguns de luxo, como Matthew McConaughey e Jean Dujardin, tem participações curtas porém marcantes e que, dentro da lógica interna do filme, funcionam muito bem.

  Tecnicamente é que o filme atinge o sublime. Scorcese usa e abusa da narrativa, interage com o público. Tudo pautado por uma excelente edição, que dá um ritmo na medida certa para uma experiência, no mínimo, divertida. A fotografia também é de alto nível, sendo o elemento técnico que transmite melhor a intensa história que é contada. Os planos ora são abertos para que nos sintamos no hospício que é a agência de Belfort, ora é fechada para que possamos ver cada momento de autodestruição dos personagens, ora fixa para apreciarmos os bons diálogos ou o intrigante desenrolar da história; ora tomada por um frenesi, um verdadeiro mergulho no mundo insano dos negócios. Por vezes vemos o mundo nos olhos do personagem título, especialmente quando este começa a tomar consciência de seus exageros. A trilha sonora é aquilo que podemos esperar de um filme do diretor: anárquica, pesada, recheada de música pop e rock clássico.

 

  Nesse retorno às origens, o mais brilhante dos diretores americanos acerta em muitos pontos, mas erra em outros que normalmente são onde desenvolve o seu melhor. O filme, apesar de bastante envolvente, é muito longo para o pouco conteúdo que apresenta. Seus personagens antes intrigantes se tornam poços de puro nada. Repito, talvez seja esse o seu objetivo. Inclusive, ele abre para uma reflexão nesses tempos de Reis do Camarote: será que o dinheiro traz realmente a felicidade ou ele torna nossas vidas cada vez mais vazias? E nos lembra de que tudo tem um preço, que nem sempre pode ser pago com dinheiro.

NOTA: 9

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Ninfomaníaca- Parte I (2013)- A psicanálise do sexo

   Ao transformar a tela num divã, Lars Von Trier disseca todas as facetas do sexo e do prazer, acompanhado por uma atuação brilhante da estreante Stacy Martin. Refinado e intenso, o filme pode ser definido com uma única e simples palavra: genial. 


Nome Original- Nymphomaniac- Volume I

Diretor- Lars Von Trier

 Roteiro- Original, de Lars Von Trier

Elenco- Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin e Shia La Boeuf 


Parte Técnica- Manuel Alberto Claro (F); Morten Hojgberg e Molen Marlene Stensgaard (E)


 Data de Lançamento: 25 de dezembro de 2013, na Dinamarca






    Sigmund Freud, pai da Psicologia, acreditava que o sexo é a energia primeira da vida humana, e também a causa de todos os traumas e fobias. Com toda uma teoria psicanalítica calcada no desejo sexual e nos possíveis malefícios de sua repressão, o médico austríaco revolucionou a forma de compreender o ser humano e criou a primeira nau a sagrar o infinito oceano do subconsciente. Certamente foram seus estudos a maior inspiração de Lars Von Trier em seu novo filme, onde coloca o sexo no divã e inicia a sua análise. 

  A película se inicia com Seligman (Skarsgard) encontrando uma mulher ferida na rua (Gainsbourg).  Convencido pela mesma a não chamar qualquer serviço de socorro médico, a leva para sua casa para ajudá-la e saber as origens de seu acidente. A mesma, que se chama Joe, acaba por se definir como uma pessoa detestável, e foi essa característica que a levou a tão deprimente estado. Intrigado , inicia uma verdadeira sessão de psicanálise, cujo fio condutor principal é o traço mais marcante da personalidade de Joe: seu incontrolável impulso sexual. 


   Eis aí o grande mérito do filme: ele não se atém a um simples estudo de personagem e de seu vício sobre o sexo,  também passa a questionar e analisar as diversas facetas desse elemento humano. As diferentes etapas da vida de Joe são manifestações genuínas do ato sexual, assumindo ele as seguintes formas: a descoberta de si mesmo na infância e na adolescência, um jogo, sua abstinência em nome do amor, sua ousadia, o desprendimento que gera, a beleza, a dor, o mistério, a força destrutiva, música, perda ... enfim, um verdadeiro desfile de sua camaleônica capacidade de se alterar segundo as vicissitudes que o envolvem. Tudo isso acompanhado com brilhantes analogias à pesca, à literatura, à matemática e até mesmo a Bach e sus polifônicas composições, envolto em um humor negro escancarado, mas igualmente refinado e extremamente informal e divertido. 


  As atuações são um capítulo a parte. Se Charlotte Gainsbourg ficou apagada nessa primeira parte, servindo apenas como narradora da história; Stellan Skarsgard rouba a cena como seu analista, servindo como lado intelectual da relação. São de seus comentários que saem as analogias que tanto enriquecem o enredo, são suas conclusões contrárias as constatações
 de sua "paciente" que envolvem o espectador na trama, sedento por respostas. No entanto,o grande destaque é a estreante Stacy Martin, que interpreta Joe em sua juventude. É ela a grande força do filme, passando por todos os arcos dramáticos possíveis: por vezes é tímida, por outras é extremamente sedutora apenas pelo olhar, ora exprime o puro prazer (ou o dissimula para que todos os homens fiquem a seus pés) ; ora transmite uma intensa fragilidade pelo amor não correspondido. Uma grande atuação que torna ainda mais intrigante a personagem que é, capítulo por capítulo, construída. Outros destaques são a atuação discreta porém marcante de Shia LaBoeuf e Uma Thurman, que toma todos os holofotes para si em um dos melhores segmentos do filme. 

   A edição é primorosa, dando um  ritmo frenético e inventivo ao filme  e permitindo ao máximo a exploração dos diferentes momentos de sua cronologia, assim como a explicação detalhada de muitas das referências e, igualmente, pontuando situações bem humoradas. Uso de flashfoward, logotipos, fotos, imagens que parecem sair de um video do Youtube; tudo é permitido, e tudo eleva a experiência a melhor possível. A fotografia também é de excelência, com planos ora abertos, ora bem intimistas, porém com um grande foco nas expressões e movimentos de Stacy, auxiliando muito sua primorosa atuação. A trilha sonora é quase inexistente na maior parte da projeção, no entanto aparece com grande força em momentos pontuais, tendo função narrativa. Bach se mistura com Steppenwolf promovendo momentos interessantes.  


  Lars Von Trier ousou, isso é um fato. Sutil em alguns momentos, escancarado em outros, amarrando diversos elementos de sua narrativa de maneira natural. Sim, o filme pode chocar os mais puristas em determinadas cenas, entretanto é extremamente divertido e, em alguns momentos, descompromissado com qualquer realidade. Isso, claro, sem perder sua genial mensagem: existem mais elementos culturais ligados ao sexo do que supõe nossa vã filosofia, o sexo faz parte da vida e a vida se exprime pelo sexo. O corte brusco no fim do filme, também brilhantemente posicionado, aumenta ainda mais o afã das massas cinéfilas por sua continuação (que está marcada para chegar nos cinemas brasileiros no fim de março),e , pelas poucas imagens que foram exibidas nos créditos, demonstram que vai focarem um lado mais visceral do sexo, sem, no entanto, perder sua carga intelectual que coroou este primeiro filme. Se a mensagem de Freud para o mundo é que o desejo sexual é a origem da personalidade, Lars Von Trier segue a risca os ensinamentos do mestre, e faz com que o mesmo seja o fio condutor de uma intrigante e conturbada vida. 


NOTA: 10

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Frozen- Uma Aventura Congelante (2013) - O mito revisitado

   Os Estúdios Walt Disney voltam á temática das princesas com uma nova roupagem, questiona suas bases morais e filosóficas mais conservadoras ao mesmo tempo que cria um clássico. Entre números musicais e novos conceitos, sai uma obra de animação de primeira grandeza.


Nome Original- Frozen

Diretor- Jennifer Lee e Chris Buck

 Roteiro- Adaptado do conto A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen por Jennifer Lee

Vozes de- Kristen Bell, Idina Menzel e Jonathan Groff


 Data de Lançamento: 10 de Novembro de 2013 (New York International Children's Film Festival)







Grandes obras acabam criando uma mitologia própria. Isso é inegável. Com as dos Estúdios Disney não poderia ter sido diferente, sendo o seu principal mito aquele envolvendo as Princesas, criaturas jovens, belas, adoráveis, amorosas, aventureiras e verdadeiros poços de virtude, normalmente incomodadas com o status quo que ocupam, buscando o novo, normalmente apresentado na figura de um Príncipe Encantado que a compreende. Essa foi a base, a primeira pedra que levou o velho Walt Disney a criar o primeiro longa de animação com Branca de Neve, e, no início da década de 1990, reassumir o trono de grande estúdio de animação com a chamada "Disney Renaissance", cuja Magnum Opus foi outro filme com a mesma temática, A Bela e a Fera. 





Ora, tal mito ,por raras vezes, nos mais de 70 anos de produção de longas dos estúdios, chegou a sofrer modificações em suas estruturas. No já citado a Bela e a Fera temos a construção de um relacionamento amoroso substituindo a paixão a primeira vista; no recente e excelente A Princesa e o Sapo o virtuoso Príncipe é substituído por um boêmio irresponsável. Outras modificações pontuais surgiram aqui e acolá, mas o cerne, a estrutura, se manteve inalterada: por mais aventureira e valente que fosse a personagem principal sua contraparte romântica e perfeita sempre a salvava e levava ao "e foram felizes para sempre". Até agora. Coube a Frozen revisar o mito. 

Ao narrar a história das princesas Elsa, portadora do poder de controlar o gelo e a neve, extremamente insegura devido ao mal que tal dom (ou maldição) pode trazer; e sua irmã Anna, uma personagem com todos os traços clássicos e românticos do gênero; a película flerta com o clichê para que, ao fim, este seja desconstruído. Anna quer tudo que todas as princesas deseja: viver uma vida recheada de aventuras e, claro um grande amor. Porém, seu romantismo e inocência exacerbados podem ser também sua maior falha. Além disso ela não deixa de ser corajosa e proativa, tomando para si a missão de encontrar sua irmã e reverter o feitiço que colocou o reino sob o gelo eterno. Já Elsa se torna talvez a personagem feminina mais complexa do universo Disney, acreditando que a solidão é o único caminho para ser quem realmente é, sendo uma mistura de medos e de uma criação super-protetora e fria desenvolvida por seus pais. Ou seja, uma princesa (ou rainha) que não se encaixa no clássico arquétipo perpetuado nas obras do estúdio de animação. 

No mais, a ação se desenvolve sem a presença de um personagem masculino extremamente forte ou marcante, cabendo aos homens da película, inclusive, certo antagonismo; mesmo ao que tange ao protagonista Kristoff que, salvo no ultimo ato de filme, pouco se aproxima dos padrões clássicos do herói disneyano. Nesse ínterim, vários elementos clássicos dos contos de fada acabam por ser desvirtuados: o amor a primeira vista vira piada, o a dependência frente aos homens, anulada; e até mesmo o ato de amor verdadeiro, talvez o maior clichê do gênero, não acaba sendo aquilo que todos esperavam. Por momentos a trama se aproxima a do primeiro Shrek, que ridicularizou os contos de fada, dando um passo a mais em suas conclusões. No entanto, não perde o filme elementos clássicos da obra do estúdio, o que o torna ainda melhor. 

É o retorno da Disney ao musical, com músicas de primeira linha, comparáveis a grandes clássicos, como Rei Leão. Do You Want to Build a Snowman e Let It Go são incluídas em contextos lindíssimos e exemplificam a beleza do trabalho musical da obra. Personagens secundários com grande carisma, como o boneco de neve mágico Olaf e a rena Sven, roubam muitas vezes a cena e engrandecem a obra. Além disso, a história continua com tons edificantes, recheada de metáforas e excelentes lições de moral. Por fim o apuro técnico na animação garantem um visual arrebatador e belíssimo, com predominância do branco e cinza da neve e do gelo em uma verdadeiro espetáculo. A cena inicial do filme nos faz esquecer que se trata de uma animação; o numero musical solo de Elsa que representa sua libertação é pura poesia visual. 



Disney mais uma vez demonstrou seu imenso potencial para se reinventar. Ao questionar sua base filosófica mais forte e, ao mesmo tempo mais rentável, os diretores Jennifer Lee e Chris Buck acabaram por criar uma obra prima da animação; um clássico instantâneo por sua bela e edificante mensagem e uma ruptura com o antigo em vários outros elementos. Se o estúdio vai continuar essa nova e progressista linha dramática, não se pode saber. Mas que um marco foi criado isso sim. Um novo Magnum opus surgiu,com temática calcada no gelo e na neve, porém nem um pouco frio. 

NOTA: 10

PS: a critica foi originalmente escrita para um concurso do site Adoro Cinema. Não, não ganhei o concurso. Como ela já estava pronta decidi postar. 

A Grande Beleza (2013)- O baile de máscaras da burguesia

      Com uma estrutura que lembra Fellini, Paolo Sorrentino desenvolve uma bela e poderosa obra sobre as hipocrisias da alta sociedade italiana e sobre o reencontro com o eu


Nome Original- La Grande Bellezza

Diretor- Paolo Sorrentino

 Roteiro- Original, escrito por Paolo Sorrentino e Umberto Contarello

 Elenco- Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferrili e Carlo Burcciorosso

Parte Técnica- Luca Bigazzi (F),  Cristiano Travaglioli (E) e Lele Marchetelli (TS)

 Data de Lançamento: 21 de abril de 2013 (Festival de Cannes)



    A vida tem maneiras misteriosas de subverter o que imaginamos. Ora planejamos um mundo de possibilidades e nada ocorre. Ora nada fazemos e ficamos completamente extasiados pelas surpresas que ela pode nos reservar. Por vezes mantemos a retidão de acordo com os valores que consideramos importantes. Muitas vezes perdemos nossa identidade em busca de algo mais. Algo mais esse que pode ser puro nada. Essas são questões levantadas pelo personagem Jep Gambardella no filme A Grande Beleza, e esse é o seu fundamento critico.

    A trama se inicia no aniversário de 65 anos de Jep, um escritor de um livro só que passou 40 anos de sua vida na mais pura boêmia cercado pelos mais variados tipos intelectuais da alta sociedade de Roma. Muito mais que isso, desde sua tenra juventude o protagonista buscou ser seu rei, seu grande baluarte. E para isso perdeu aquilo que tinha de mais precioso: sua sensibilidade, grande marca pessoal na juventude. Chocado com a velhice que o assombra e com o fato de ser um ser incompleto apesar do status que tem, busca levar sua vida de acordo com as vicissitudes de sua vontade. Junto com essa decisão, a narrativa toma um corpo crítico.



    Inicia-se, assim, um desfile de personagens singulares, cada qual coberto por uma máscara de hipocrisias para que, ante a "sociedade", sejam seres humanos perfeitos. Surge aqui um ricasso que diz que tem o casamento perfeito enquanto é conhecido pelas prostitutas pelo nome; a intelectual esquerdista que se considera como um modelo para os demais quando, na realidade, tem muitas falhas; a viúva rica que vende seu filho com sérios distúrbios mentais como uma pessoa sã... assim como muitos outros que ora tem suas falhas apontadas por uma câmera em terceira pessoa, ora tem seus vícios apontados por Jep. Este, quanto mais busca a sua essência,  fica menos hipócrita consigo mesmo e mais sincero com aqueles que o rodeiam, gerando situação desconfortáveis, mas que em tela tem um fino humor. Chega, em um ponto da narrativa, a a dissertar sobre a hipocrisia demandada por seu circulo social quando define o comportamento ideal em um velório, em uma cena digna de aplausos.

    A busca por si mesmo também é temática central do filme. Jep descobre que seus bloqueios criativos derivam do papel que assumiu frente aos outros durante quarenta anos a troco de um simples nada, de um vazio existencial. Entra aí a arte como um personagem desse filme: esta é uma expressão da verdade, não do individuo para com os outros, mas sim dele com ele mesmo. Em uma dada cena, vemos uma garota pintora, que, a contragosto, faz uma nova obra frente aos apreciadores de arte. A fúria e a melancolia da infância que lhe é roubada em nome do dinheiro geram uma obra de arte sem precedentes. Em outra cena o protagonista visita uma exposição de um fotógrafo que, seguindo os passos do pai tira uma foto sua a cada dia e se sente realizado com isso. Estes e outros exemplos fazem com o protagonista busque o belo na simplicidade, na crueza dos sentimentos verdadeiros. E sim, isso é uma bela mensagem.


    Tecnicamente a obra é irretocável. Uma fotografia de mestre ora coloca o espectador como um terceiro onisciente, mostrando-lhe a verdade por detrás das máscaras e véus que envolvem muito dos personagens, criando imagens ora aterradoras, ora cheia de simbolismos que dão todo o sentido a trama. Por vezes, a câmera faz o papel dos olhos de Jep, demonstrando sua clínica visão de mundo. A edição entra para, com grande mestria, combinar essas diferentes lógicas visuais e criar um resultado final de tirar o fôlego. A trilha sonora varia de uma predominância de cantos gregorianos à música mais popular, também criando o clima para essa grande obra.

    No que tange às atuações, cada personagem desse grande teatro de marionetes é interpretado por um ator que dá a conta do recado, demonstrando que o elenco foi escolhido com esmero. Destaque para a jovem Agata Malysko, que interpreta a jovem pintora e, mesmo com pouco tempo em tela, transmite diferentes sensações e emoção em uma das melhores cenas do filme. Os louros nesse quesito ficam todos com Toni Servillo, que dá toda graça ao protagonista. Contemplação, melancolia, alegria são muitas das sensações que desenvolve na construção do personagem, sempre com boas doses de humor e carisma. Sua genial interpretação faz com que Jep Gambardella entre no rol de grandes personagens do cinema contemporâneo, denso e ao mesmo tempo, leve; perdido entre a identidade e a hipocrisia, cansado dessa ultima, em busca da liberdade de se redescobrir como ser humano.


  Paolo Sorrentino, com filmografia marcada por insucessos de público e crítica faz um excelente trabalho por aqui, lembrando muito a maior referência e figura do cinema italiano: Federico Fellini. Usando de personagens caricatos e de um tom quase surrealista, com jogos de luz e sombra e posicionamento de câmera; percebemos que conseguiu reunir em as melhores influências do trabalho desse rei do cinema mundial. Embora exagere na sua fauna de personagens-metáfora, por vezes esquecendo que, bem ou mal, estamos acompanhando a história de Jep; ou exagerando nos simbolismos (o que, inclusive, ajuda a tornar o filme desnecessariamente longo em seu ultimo ato), fez um excelente trabalho, digno de um mestre do cinema. A critica que destila na obra é valida e toca num ponto importante: em um mundo em que imagem é tudo, como ser feliz consigo mesmo? E, graças aos deuses, o filme não nos responde isso, apenas abre espaço para o debate.

NOTA: 9