domingo, 16 de fevereiro de 2014

Nebraska (2013) - Prisioneiros do Passado

  Alexander Payne faz um exercício de lógica visual preto e branco para tratar do passado e do homem que é seu prisioneiro; assim como romper as grades dessa prisão com muito bom humor. 



Nome Original- Nebraska


Diretor- Alexander Payne 


 Roteiro- Original, por Spike Jonze


Elenco- Bruce Dern, Will Forte e June Squibb

Parte Técnica-  Phedon Papamichael (F); Kevin Tent (E); Mark Oton (TS)

 Data de Lançamento: 23 de Maio de 2013, no Festival de Cannes







Somos o que vivemos algum dia, isso é inegável. É pelas experiências que aprendemos a melhorar no futuro, nos reinventar. E não existe melhor professor que aquilo que vivenciamos. O problema é quando não conseguimos aprender com as falhas do passado e vivemos presos a elas, remoendo o que poderia ser no lugar de buscar o melhor e novo no presente.  A vida na prisão ao passado é sem cor, sem motivação, é algo sem graça e sem busca pelo diferente ou pelo melhor. E é com lentes em preto e branco que Alexander Payne trata desse tema em Nebraska.



 Woody Grant (Bruce Dern), um velho alcoolátra, recebe uma carta dizendo que ganhou 1 milhão de dólares, e que deveria pegar seu prêmio em Lincoln, Nebraska. No entanto, ninguém acredita que o prêmio seja real e o mesmo tenta partir sozinho em busca do mesmo, até que seu filho (Will Forte) decide ajudá-lo. Imprevistos ao longo da viagem fazem com que eles parem na pequena cidadade natal de Woody, onde vários detalhes do seu passado que explicam muito o comportamento e personalidade do mesmo. Esse reencontro com o que passou em um lugar onde tudo parece igual vai mostrar que, infelizmente, o protagonista dessa história não superou tudo que passou, mas vê no prêmio uma forma de mudar sua vida definitivamente.

O filme não é só sobre a inocência de um homem que, com o tempo, descobrimos bondoso e inocente, mas sobre como superar um passado traumático. Woody sempre foi uma pessoa calada e de bom coração, disposto a ajudar aqueles que precisam; no entanto, nunca recebeu o reconhecimento de seus pares por isso. Portanto, tornou-se uma pessoa triste, e buscou no álcool a fuga para sua realidade. Via no prêmio mais que uma chance de mudar, ele vê na salvadora carta premiada uma recompensa da vida por tudo o que fez e uma chance de ajudar ainda mais aqueles que o cercam. É um novo escapismo, só que agora na fantasia, e que ao mesmo tempo cria esperanças em, finalmente, um futuro. O problema é que o mundo não pensa da mesma maneira que ele: é um derrotado, não merece o que vai receber, ou até merece, desde que eu receba também uma parte disso. Seu filho percebe logo esse quadro e tenta ajudá-lo a romper com essa história que o atormenta; nem que para isso tenha que subverter a realidade.



A lógica visual do filme, com sua fotografia em preto e branco nos remete a essa prisão no que passou. Não só isso, como mostrar que o mundo onde se passa a ação, a cidade natal do protagonista, também parou no tempo, não evoluiu apesar do envelhecimento de seus personagens, dedicados remoer o passado sempre que. É uma aplicação inteligente da técnica em prol da narrativa e da temática, e é o grande acerto do filme. Aliado a isso temos uma trilha sonora country/jazz melancólica, o estado de espírito do espaço temporal em que acompanhamos o desenrolar da trama. A edição é boa, e só, nada inventivo ou fora dos padrões normais, apenas ajuda na fluidez da película.

As atuações também são outro grande acerto do filme. Bruce Dern cria, com base em excelente linguagem corporal, um Woody brilhante. Ébrio, melancólico, desligado da vida e com um desejo de ser feliz com o prêmio que ganhou, mostra porque ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes. Já Will Forte, em uma química excelente com o primeiro, faz o filho, essencialmente preocupado com o pai e o primeiro a se levantar contra todos os fantasmas do passado do mesmo, questionador e extremamente amoroso. June Squibb faz a esposa de Woody, uma mulher desbocada e presa igualmente ao passado, porém com capacidade de analisá-lo de maneira crítica e cética, servindo como ótimo contraponto e, ao mesmo tempo, um excelente alívio cômico. Outras atuações pontuais como os familiares e habitantes da pequena cidade são igualmente boas, e passam bem o clima do filme.

Alexander Payne volta ao drama familiar e se mostra mais afiado do que nunca. Com uma reflexão sobre se prender ao passado e à necessidade de ser feliz pelas opiniões alheias, une, mais uma vez, a comédia inteligente tirada de situações quotidianas e o drama sem exageros das situações familiares. Com um apuro técnico invejável para os padrões hollywoodianos, mostra que não se precisa de muito para fazer bonito, que menos pode sim, ser mais; e que não existe nada melhor que uma boa história. Uma grande surpresa na corrida pelo Oscar e um must see para todos aqueles que curtem filmes descompromissados e, mesmo assim, abertos para a reflexão.

NOTA: 8

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ela (2013) - Sétima Arte

"É como se eu estivesse lendo um livro , e é um livro que eu amo profundamente.Mas , agora , estou lendo-o devagar. As palavras estão muito separadas,e os espaços entre elas são quase infinitos.Ainda consigo te sentir. E as palavras da nossa história. Mas é nesse espaço infinito entre as palavras, que me encontro agora. É um lugar que não está no mundo físico. É onde todo resto está ,e eu nem sabia que existia." Essas são as palavras de Samantha, sistema operacional e personagem chave de Ela. Um filme,  poético, metafórico, sentimental, e casado perfeitamente com o racional. 

Nome Original- Her

Diretor- Spike Jonze

 Roteiro- Original, por Spike Jonze

Elenco- Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson, Olivia Wilde e Rooney Mara


Parte Técnica- Hoyte Van Hoytema (F); Eric Zumbrunnen e Jeff Buchanan (E); Arcade Fire(TS)


 Data de Lançamento: 13 de Outubro de 2013, no New York Filme Festival
  


Platão é um filosofo que dispensa qualquer tipo de apresentação, definiu em sua obra O Banquete, o amor é a eterna busca pelo que não temos, pelo além, pelo verdadeiro, enfim, pelo ideal. O amor para o mestre é a virtude, o puro, além do físico e de qualquer interesse passional, verdadeiras máculas. É a busca por algo transcendental, que leva à beleza e à contemplação. É algo extramundano, enfim. E é um dos temas da moderna fábula Ela, de Spike Jonze. Em um futuro não muito distante, Joaquin Phoenix vive Theodore,  um homem recém divorciado que trabalha escrevendo cartas de amor para casais ou famílias que não conseguem realmente expressar o que sentem. Solitário e magoado, compra um novo sistema operacional que promete ser mais que um gestor da vida pessoal de seu dono, mas um confidente, um analista. E assim conhece Samantha ( não só dublada como interpretada por Scarlett Johansson) a voz e inteligência artificial do software, com quem fica cada vez mais íntimo, até chegar ao ponto de se apaixonar por ela. 

  São tantos os temas que podem ser apontados em Ela que fica até difícil escrever sobre eles. O maior deles, obviamente, é a relação platônica que se desenvolve entre o homem e sua máquina. Platônica porque nada mais é que a busca de Theodore pela mulher ideal, uma vez que saiu de um relacionamento conturbado com uma pessoa que gostaria de passar a vida inteira junto. Vemos um ser humano completamente perdido pela dor e pelo vazio deixado, sendo viver o ideal a única saída que ele tem para voltar a ser feliz. Ora, o que é o amor ideal senão uma manifestação da individualidade de quem ama? É uma fantasia, um produto da imaginação como vários outros; nada mais, nada menos que uma projeção de como queremos que os outros lidem conosco. E isso ajuda, claro. Ajuda a refletir sobre o que vivemos anteriormente e porque isso não deu certo. O personagem do filme acaba por se reencontrar e por fazer uma auto-análise ao vivenciar toda a loucura de amar uma voz, um programa de computador. Ele só é o que é porque viveu um relacionamento, que apesar das desvantagens, o moldou; e percebe que tudo pode ter dado errado porque ele projetou no plano fático um ideal. Portanto, aí está uma das grandes sacadas do filme: não é uma simples história sobre o amor ideal, é uma análise reflexiva sobre esse ideal e sobre como ele pode influenciar nas nossas vidas. Não só isso, como todo relacionamento passado tem coisas boas e coisas ruins, e como cada um de nós cria para nós mesmos a história do que vivemos, uma seleção de memórias. Não só nos faz sentir todos os difíceis percalços que são os relacionamentos e nos faz refletir sobre eles o tempo inteiro. 
    
   Her, no original, também é uma ficção científica, e como todas, busca criticar algum vício moderno em torno da alegoria. Que alegoria? Nós realmente estamos vivendo uma época de relações sociais artificias. Ao mostrar um mundo frio e totalmente vazio, Spike Jonze nos leva a questionar toda a dependência para com a tecnologia, a busca por um retorno imediato, um conforto momentâneo e fugaz. Nada mais é que a relação de Theodore e Samantha: ela sabe tudo sobre ele a partir das informações e sensações que ele compartilha e dá a resposta que ele precisa ouvir. Mais uma vez vemos aí o amor ideal que nada mais é que o mecânico de uma gestão de informações e respostas rápidas; nada mais que um software mesmo. Há uma relação de dependência entre homem e máquina, o que não é recíproco, é simplesmente um processo criado por programadores. E o pior: Theodore não é o único que se encanta pelo programa. Toda sociedade está claustrofóbica e impessoal, anti-humana, que todos desenvolvem verdadeiros relacionamentos com seus respectivos softwares, é natural. Tão natural desejá-los que outros servem como intermediários sexuais entre a voz e o seu dono de carne e osso. Será esse o futuro negro que nos está reservado? Poderemos na era dos tablets e dos microssegundos reverter isso ou estamos fadados a uma dependência emocional para com as máquinas?

  São tantos questionamentos de rara beleza e inteligência que, incrivelmente, não perdem o lado sentimental. E muito disso se deve a Joaquin Phoenix, simplesmente primoroso. Detalhista em expressar os sentimentos de Theodore, nos conquista e emociona da primeira a última cena. Sofremos com ele, buscamos um novo sentido, uma nova cor na vida; nos encatamos com Samantha, nos decepcionamos, nos questionamos... tudo isso ligado a uma atuação arrebatadora, minimalista, real. Theodore é o nosso espelho, ou melhor, o espelho de nossas almas calejadas. Todos sofrem por amor, todos ficam presos a resquícios perdidos na memória e todos tem que lutar contra isso para superar. A sensibilidade que acompanha o trabalho desse brilhante ator é impossivel de passar desapercebida e de tocar os corações da platéia, uma verdadeira aula sobre a emoção sem precisar exagerar ou apelar. Scarlett Johansson é a voz... mas em nenhum momento percebemos ela como tal, isso seria simplista. É real, podemos sentir sua presença, imaginar seus traços como se estivesse onipresente durante a projeção, nos deixamos seduzir por ela em todas as suas nuances, suspiros e risos verdadeiros. É realmente apaixonante. E somente uma atriz de primeira linha poderia nos proporcionar uma gama tão extensas de emoções apenas pelo timbre, pela forma de se deliciar com as palavras. E é isso que ouvimos não só pelos sentidos, mas diretamente na alma, um trabalho de primeira, único e especial. Amy Adams está ali para nos lembrar que Theodore não é o único que passa por dificuldades e tem vazios existenciais, assim como também não é o único a se refugiar no alento de uma máquina, uma atuação discreta e igualmente tocante. Olivia Wilde e Rooney Mara vem pra nos mostrar, em quase pontas, o quanto superar o que deu errado é difícil e doloroso. 

A técnica, por sua vez, está a serviço do brilhante filme. A fotografia é intimista, está a serviço da atuação de Joaquin; mostra cada detalhe, cada expressão, cada passo da vida melancólica que ele vive. Está com cores mais escuras ou mais brilhantes, a serviço de seu estado de espírito; um contraponto também, em conjunto com a direção de arte, para mostrar o mundo cinzento em que a história se passa, e o calor da redescoberta do amor pelo personagem principal. Consegue um feito talvez inédito: a beleza total em uma cena de simples tela escura. O poder arrebatador da imaginação. A edição, brilhante, mostra flashbacks, visões de mundo e sensações, constrói Theodore assim como toda a lógica visual do filme. E claro, não podia faltar a minimalista e bela trilha sonora da banda canadense Arcade Fire, sob a batuta, claro, da alma de nosso anti-herói (ou simplesmente, nosso igual), denotando todas as sensações e maravilhas, a alma desse Ciryano de Bergerac pós-moderno. 

 Spike Jonze, o capitão, sempre criativo e surpreendente, não perde essa característica. No entanto, é crítico e ao mesmo tempo sensível; é um poeta e ao mesmo tempo cientista social. Não nos traz uma comédia romântica sobre o amor perfeito; uma ficção científica sobre os males da sociedade da informação ou um drama sobre o que perdemos pelo caminho. Ele nos traz um filme sobre a vida, não minha, não sua, mas de todas as pessoas, de seres humanos. E a vida não se explica racionalmente: tem que ser sentida, saboreada, vivenciada. Longe de melodramas, a tristeza existe; longe de hipérboles, o amor existe; assim como a dor; a alegria, o medo e a solidão. E sim, ele consegue nos fazer sentir isso tudo ao nos colocar sob a pele de Theodore, com sua câmera totalmente pessoal; nos fazer rir, nos fazer chorar, nos fazer viver. Mas vai além: racionaliza tudo sem perder qualquer sentimento, questiona o que vivemos, quem somos, o que podemos ser, o que idealizamos, como levamos nossos relacionamentos, o que tiramos deles... nos faz pensar. Pensar sobre a vida e refletir sobre o tudo, o universo. E como nos falou uma vez Eduardo Coutinho, falecido esse mês, grande é o cineasta que levanta as perguntas, e não aquele que nos dá a resposta. E é nesse casamento perfeito entre o coração e a razão que Jonze nos entrega Ela. Mais que um filme, uma obra que justifica o Cinema receber o nome de Sétima Arte. É um daqueles filmes que aparecem de tempos em tempos, revoluciona com uma temática ao mesmo tempo simples e densa. É a combinação perfeita e única entre poesia, crítica, prosa e estudo antropológico. 
Talvez nada dessa análise faça sentido, afinal, é uma experiência subjetiva única. Assista a Ela; se encante com Ela, refleta sobre Ela, se emocione com Ela, se envolva por Ela.... se apaixone por Ela. Afinal, a paixão é a única forma de loucura socialmente aceitável, até mesmo por uma inteligência artificial. Por que não por um filme? 

NOTA: é impossível mensurar essa obra de arte por um número e seria um pecado fazê-lo.




sábado, 8 de fevereiro de 2014

Trapaça (2013) - Xadrez com Tubarões

David O. Russel, perito em bater na trave com filmes que não conseguem fugir do lugar comum atinge seu melhor em um inteligente conto sobre a vigarice e vencer na vida; e mostra a todos, mais uma vez, porque é o melhor diretor de atores de Hollywood.


Nome Original- American Hustle

Diretor- David O. Russel

 Roteiro- Original, por David O. Russel e Eric Warren Singer

Elenco- Cristian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence e Jeremy Renner



Parte Técnica- Linus Sandgren (F); Jay Cassidy, Alen Baumgarten e Crispin Struthers (E) e Dany Elfman(TS)


 Data de Lançamento: 13 de dezembro de 2013, nos EUA e Austrália


  


O fim dos anos 70 nos Estados Unidos representou, realmente um fim de uma era. Com a sociedade civil desacreditada por Watergate e a derrota no Vietnã, os políticos em crise de representatividade e novos problemas sociais e econômicos surgindo, não havia mais espaço para os Hippies, sua contracultura revolucionária e sua filosofia de vida baseada na paz e no amor. Entram em cena pessoas pé no chão, tristes, tendo que vencer na vida custe o que custar. O cinema, antes produto da opulência dos grandes estúdios e mostra a rua, revoluciona e inventa na estética. Diretores como Michael Cimino, Martin Scorcese e Francis Ford Coppola, obras como Taxi Driver, Embalos de Sábado à Noite e Amargo Regresso marcam essa transição para um viés mais inventivo, crítico e humano. E esse é o pano de fundo para o novo filme de David O. Russel, que não só retrata esses novos tempos como se aproxima dos diretores citados ao fazê-lo.

  Acompanhamos a história de Irving Rosenfeld (Cristian Bale), que desde cedo aprendeu que na vida o que vale é a lei da sobrevivência, com o peixe grande engolindo o pequeno. Portanto, a unica forma que tinha de crescer na vida e se tornar algo mais, seria por meio de vigarices e fraudes, como venda de pinturas falsificadas e falsas promessas de investimento. Ao se aliar com sua amante Sandy (Amy Adams), agora Lady Edith, em novos golpes, realiza seus sonhos de luxúria e dinheiro fácil; até ser pego por Richard diMaso (Bradley Cooper), um agente do FBI igualmente ganancioso, que promete liberdade em nome de ajuda para realizar novas prisões de vigaristas. No entanto, em uma das investigações, percebe o agente que conseguiria algo maior: um esquema de corrupção e envolvimento com a máfia do prefeito de Atlantic City (Jeremy Renner) na época de sua reconstrução.

   O filme começa com uma primeira tentativa de aproximação ao prefeito frustrada. Retornamos no tempo para conhecermos nossos protagonistas no melhor estilo Scorcese, com narrações em off e edição rápida e inventiva. E depois, ao voltarmos ao ponto inicial do filme, somos jogados na total incerteza. E é aí que mora o melhor do filme: estamos envolvidos com a história, perdidos no meio de tão intrincadas tramas e personagens, uma verdadeira bacia fluvial de possibilidades, com rios, afluentes e meandros de puro suspense e indecisão. O melhor, tudo parece um jogo de xadrez entre personagens maravilhosos e de inteligência aguçada, pura malandragem em que um sempre tenta ser mais esperto que o outro. Mas nem tudo sai do jeito que eles muitas vezes esperam, há uma reflexão constante sobre os atos que são tomados, algumas peças tem vida própria e podem, simplesmente, distribuir tapas na cara. E é nesse jogo de malícia que sai a grande mensagem do filme: para se dar bem na vida, ou simplesmente se livrar das arapucas que ela nos arma, é necessário se adaptar e se reinventar.


   E esses personagens, como são construídos? David O. Russel dá total liberdade a seus atores, deixa eles soltos para entrar de cabeça nos elementos humanos do roteiro, criando uma química invejável e ao mesmo tempo, sublime. Cristian Bale, em mais uma transformação física, é o protagonista, um homem que quer retomar o controle da sua vida, e está totalmente perdido. Mas não deixa de ser carismático, o clássico malandro da cultura popular de fala desenvolta e sorriso fácil, astuto para saber quando mudar a maré a seu favor; preocupado e triste por estar sob uma sombra de incerteza. E, em cena de um grande sentimentalismo não característico, se mostra especialmente humano: ama verdadeiramente seu filho, a ponto de abandonar a amante por ele. Amy Adams, é sua alma gêmea mesmo nisso, passando de sedutora maliciosa a uma mulher frágil e amedrontada, e faz isso com maestria e extrema naturalizade. A mulher de Irving, Rosalyn, maníaca depressiva, completamente desvairada e ao mesmo tempo extremamente inteligente e manipuladora; e que, bem da verdade é apenas mal amada e infeliz, busca o ideal que criou para si como mulher e mãe; é interpretada por Jennifer Lawrence, um verdadeiro furacão em cena, que rouba a tudo e a todos, seduz um público com seu jeito explosivo e exagerado, quase infantil por vezes; é o que todos querem ver, encantados por uma atuação grandiloquente. Bradley Cooper é outro que também atinge o melhor com seu agente, seduzido pelo caminho fácil e pelo poder, um monstro de ambição, voraz, visceral, imprevisível, destruidor... uma interpretação irretocável e brilhante, a maturidade de um ator. Jeremy Renner é a dúvida: será que o prefeito é realmente um corrupto sem escrúpulos ou ele está sujando as mãos em nome do melhor para o seu povo? Amigável, Renner não nos dá a resposta, apenas, em sua brilhante dubiedade, gera essa dúvida.Louis C.K. e Robert DeNiro fazem pontas interessantes e até nos fazem desejar por mais tempo dos mesmos em tela.

  A técnica, como não poderia deixar de sem é igualmente envolvente. É uma ode ao cinema dos grandes diretores dos anos 70. A estética, os cortes rápidos, a câmera ora em close, ora como se fosse a visão dos personagens, intimista, inventiva, dinâmica... um trabalho de dar inveja aos grandes mestres do cinema citados, esmerado, envolvente e belo. A trilha sonora é basicamente não incidental (embora essa, assinada por Dany Elfman, quando aparece, seja de grande qualidade); com muito Duke Ellington e seu Jazz envolvente; o rock da época que vai de Jefferson Airplane a Sir Elton John, o disco;  obras que trabalham em simbiose com a trama e com o que se passa com os personagens. Uma escolha minuciosa e acertada que demonstra, mais uma vez, uma brilhante condução. Direção de arte, dispensa comentários: é perfeita em todos os detalhes.


  Chegamos então a David O. Russel, um diretor que sempre, infelizmente, morria na praia. Se em O Vencedor fez uma ótima união entre o drama familiar e o drama esportivo mas não conseguiu fugir dos padrões do gênero; se em O Lado Bom da Vida desperdiçou uma excelente construção de personagens em uma comédia romântica recheada de clichês baratos, de um lugar comum desinteressante e fraco; em Trapaça acerta em cheio ao nos jogar na total incerteza. Usa de clichês? Sim, em uma cena ou outra,  no momento certo e sem exageros, sem deixar que isso atrapalhe o desejo do espectador no que vem a seguir. Exagera um pouco na verborragia, mas isso não chega a atrapalhar. O apuro técnico é invejável e demonstra que bebeu da mesma água dos grandes mestres, e os homenageia com um estilo que poucos conseguem reproduzir. Mas o seu melhor continua sendo a direção de atores: ele é o grande jogador de xadrez no fundo. Mas, magistralmente, dá as suas "peças" o objetivo que quer atingir; o movimento é por conta delas. Uma demonstração de humildade e confiança. Atinge, assim, a maturidade de diretor e se inscreve no rol dos grandes de Hollywood sem perder as raízes. Um xeque-mate certeiro.

NOTA: 9,5

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

12 Anos de Escravidão (2013)- Lições pedagógicas sobre a escravidão

  Um dos grandes favoritos ao Oscar de Melhor Filme, a nova obra do diretor Steve McQueen até consegue envolver seu público. Mas, a história com grande potencial se perde na simplicidade, desperdiça bons atores e nos entrega um retrato detalhado, como um livro didático, sem, no entanto, debatê-lo nas telas. 



Nome Original- 12 Years a Slave

Diretor- Steve McQueen

 Roteiro- Adaptado por John Ridley,baseado em livro homônimo escrito por Salomon Northup

Elenco- Chewitel Ejiofor; Lupita N'yongo, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti e Brad Pitt


Parte Técnica- Sean Bobbitt (F); Joe Walker (E) e Hans Zimmer (TS)


 Data de Lançamento: 30 de Agosto de 2013, no Festival de Telluride


  


Liberdade. Vários foram os filósofos que a definiram. Uns a ligavam com a busca dos verdadeiros sentimentos. Outros a diziam ser a mais pura manifestação do eu, a verdade. Os estudiosos da política diziam que é a ausência de dominação. Os juristas, o fazer o que quiser nos limites da lei. Willian Wallace, do moderno épico Coração Valente, personificado por Mel Gibson, disse: "Fujam e viverão. Morram deitados em suas camas, daqui há alguns anos. Não valeria mesmo a pena, trocar todos esses dias a partir de hoje,por uma chance, só uma chance, de vir aqui e de dizer aos nossos inimigos, que eles podem tirar nossas vidas,  mas jamais irão tirar, a nossa liberdade!", frase poderosa que coloca a liberdade como o bem maior, acima da vida, e pela qual se vale a pena lutar. É um conceito indefinido, que se molda de acordo com o arcabouço moral e ideológico de quem o procura definir. E não deixa de ser belo por isso.




  12 Anos de Escravidão tem como plano de fundo o fim da liberdade. Sua trama é a história de Salomon Northup (Chewitel Ejiofor), negro e livre nos EUA pré Guerra Civil, que, após uma fraude, é sequestrado por traficantes de escravos e forçado a viver como escravo nos latifúndios de algodão do sul do pais. Uma bela premissa, que poderia nos levar aos limites da luta pela liberdade e aos debates sobre os horrores da escravidão, uma vez vista por um homem livre forçado a perder seu bem mais precioso. No entanto infelizmente isso não acontece. Apesar do envolvimento do espectador para com o protagonista, a história não passa de um relato extremamente didático e coberto de verniz sobre a escravidão americana. Acompanhamos o dia a dia de Salomon, agora chamado Platt, nas fazendas: seu primeiro mestre com traços mais humanos; o segundo, um verdadeiro déspota; suas relações com outros escravos, senhores, capatazes, seu trabalho nas lavouras de algodão... e só. 

O personagem principal parece tomado por uma apatia terrível, que o deixa completamente engessado. Poucas são as cenas onde ele parece demonstrar que quer lutar contra o status em que se encontra, poucas são as tentativas de fuga ou de um contato com qualquer pessoa que poderia comprovar da onde veio. Lembra muito o célebre personagem Jó, da Bíblia, que via o mal e as desgraças acontecendo consigo e confiava que somente Deus poderia tirar seu sofrimento; só que em nenhum momento vemos tal justificativa religiosa para esse comportamento mortificado.Os castigos físicos, o fato mais revoltante do trabalho escravo, são distantes, aparecendo em uma cena logo no início da película e outro no final. Os debates sobre os abusos da escravidão e claro, os debates e questionamentos que poderiam surgir do confronto entre a liberdade anterior e a prisão aos grilhões (na melhor alegoria Rousseauniana possível), simplesmente não existem, ou melhor, ficam reduzidos a uma única cena. Parece que estamos lendo um manual didático sobre a escravidão, só que para crianças, omitindo partes mais viscerais, embora não escondendo sua existência e sem nenhum elemento que possa fomentar; simplesmente nos elucida sobre a vida de um escravo.



  No entanto, estamos envolvidos pela melancolia e sofrimento de Salomon. E isso se deve a excelente atuação de Chewitel Ejiofor. Com grande sensibilidade e expressividade acima da média, o ator, experiente por trabalhos em filmes independentes no Reino Unido, consegue dissecar todas as desesperadoras sensações do protagonista; e sua atuação acaba sendo o que tem de melhor na película. Já o resto do elenco, de primeira linha de Hollywood, acaba sendo desperdiçado em papéis pouco marcantes ou simples demais, que não demandam nada de suas capacidades artísticas de primeira grandeza. São exemplos: Benedict Cumberbatch, Paul Giamatti, Brad Pitt e Quvenzhané Wallis. As únicas exceções as atuações de Paul Dano,em um papel inédito, completamente cruel como um capataz, lembrando o Kevin Spacey dos anos 90; e Michael Fassbender, que mostra porque conquistou espaço na industria cinematográfica americana, como o segundo mestre de Salomon, um bêbado depravado com tendências a psicopatia, um homem com mentalidade atrasada até para o seu tempo, considerando escravos não seres humanos, mas mercadoria. Lupita N'yongo, que tem sido cotada para o Oscar de Melhor Atriz coadjuvante, é igualmente esquecível, com apenas uma cena de boa atuação, mas nada de espetacular. 

  Tecnicamente o filme tem grandes acertos, como um filme de época demanda. A fotografia varia de algo mais abrangente, para mostrar o número de escravos na lavoura os suas condições sub-humanas, para algo mais intimista, um olhar de Solomon para sua nova realidade e uma forma de torná-lo muito próximo de seu espectador. A trilha sonora de Hans Zimmer um acerto, com acordes que lembram seus melhores trabalhos nos anos 90, cria até alguns momentos de possível tensão dentro da narrativa. A direção de arte, como não podia deixar de ser, é invejável. O grande problema está na união entre maquiagem e edição, que nos deixa confusos quanto a passagem de tempo: em nenhum momento o espectador tem a sensação que se passaram 12 anos, parece mais que foram uns dois ou três anos, a bem da verdade. Os saltos temporais parecem muito curtos, e o trabalho de maquiagem para envelhecer os atores, inexistente. Mas esses dois tem lá suas vantagens: o ritmo do filme é bem fluido e o trabalho para fazer as cicatrizes de maus tratos, verossímil



 Steve McQueen;  apenas buscou o simples sem perder o correto tanto na trama quanto na técnica. Mas perdeu em ousadia. Se em seu filme anterior por se utilizar das nuances e dos subentendidos atingiu o sublime e até mesmo, o polêmico; nesse se perde totalmente, com uma irritante didática sobre a escravidão, detalhista demais, mostra demais e não apresenta conteúdo algum. Talvez para um público americano tenha quebrado tabus, afinal, esse passado de violência e selvageria é negligenciado pela historiografia oficial. Aqui no Brasil nascemos sabendo dos malefícios e terrores da escravidão, somos doutrinados não só nas escolas mas pela cultura de massa: a literatura desde os tempos em que essa prática era recorrente populariza a ideia de barbárie; a televisão mostrou com imagens fortes seus resultados terríveis; o cinema sempre desenvolveu o tema com maestria e senso de humanidade. Por isso ficamos com sensação que saímos de um filme pobre, acrítico e extremamente superficial; anto nossos amigos da América do Norte o consideram como um marco. Porém, independente desse debate geográfico e cultural, é uma obra bem aquém da grandiosidade que lhe tem sido atribuída, esquecível; mas com uma função social até que importante: é ótima para ser passada em colégios, despertar seu interesse sobre um tema que não pode ser esquecido, uma piscina rasa para se aprender a nadar e, posteriormente, quem sabe, mergulhar em águas profundas. 

NOTA: 7