David O. Russel, perito em bater na trave com filmes que não conseguem fugir do lugar comum atinge seu melhor em um inteligente conto sobre a vigarice e vencer na vida; e mostra a todos, mais uma vez, porque é o melhor diretor de atores de Hollywood.
Nome Original- American Hustle
Diretor- David O. Russel
Roteiro- Original, por David O. Russel e Eric Warren Singer
Elenco- Cristian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence e Jeremy Renner
Parte Técnica- Linus Sandgren (F); Jay Cassidy, Alen Baumgarten e Crispin Struthers (E) e Dany Elfman(TS)
Data de Lançamento: 13 de dezembro de 2013, nos EUA e Austrália
O fim dos anos 70 nos Estados Unidos representou, realmente um fim de uma era. Com a sociedade civil desacreditada por Watergate e a derrota no Vietnã, os políticos em crise de representatividade e novos problemas sociais e econômicos surgindo, não havia mais espaço para os Hippies, sua contracultura revolucionária e sua filosofia de vida baseada na paz e no amor. Entram em cena pessoas pé no chão, tristes, tendo que vencer na vida custe o que custar. O cinema, antes produto da opulência dos grandes estúdios e mostra a rua, revoluciona e inventa na estética. Diretores como Michael Cimino, Martin Scorcese e Francis Ford Coppola, obras como Taxi Driver, Embalos de Sábado à Noite e Amargo Regresso marcam essa transição para um viés mais inventivo, crítico e humano. E esse é o pano de fundo para o novo filme de David O. Russel, que não só retrata esses novos tempos como se aproxima dos diretores citados ao fazê-lo.
Acompanhamos a história de Irving Rosenfeld (Cristian Bale), que desde cedo aprendeu que na vida o que vale é a lei da sobrevivência, com o peixe grande engolindo o pequeno. Portanto, a unica forma que tinha de crescer na vida e se tornar algo mais, seria por meio de vigarices e fraudes, como venda de pinturas falsificadas e falsas promessas de investimento. Ao se aliar com sua amante Sandy (Amy Adams), agora Lady Edith, em novos golpes, realiza seus sonhos de luxúria e dinheiro fácil; até ser pego por Richard diMaso (Bradley Cooper), um agente do FBI igualmente ganancioso, que promete liberdade em nome de ajuda para realizar novas prisões de vigaristas. No entanto, em uma das investigações, percebe o agente que conseguiria algo maior: um esquema de corrupção e envolvimento com a máfia do prefeito de Atlantic City (Jeremy Renner) na época de sua reconstrução.
O filme começa com uma primeira tentativa de aproximação ao prefeito frustrada. Retornamos no tempo para conhecermos nossos protagonistas no melhor estilo Scorcese, com narrações em off e edição rápida e inventiva. E depois, ao voltarmos ao ponto inicial do filme, somos jogados na total incerteza. E é aí que mora o melhor do filme: estamos envolvidos com a história, perdidos no meio de tão intrincadas tramas e personagens, uma verdadeira bacia fluvial de possibilidades, com rios, afluentes e meandros de puro suspense e indecisão. O melhor, tudo parece um jogo de xadrez entre personagens maravilhosos e de inteligência aguçada, pura malandragem em que um sempre tenta ser mais esperto que o outro. Mas nem tudo sai do jeito que eles muitas vezes esperam, há uma reflexão constante sobre os atos que são tomados, algumas peças tem vida própria e podem, simplesmente, distribuir tapas na cara. E é nesse jogo de malícia que sai a grande mensagem do filme: para se dar bem na vida, ou simplesmente se livrar das arapucas que ela nos arma, é necessário se adaptar e se reinventar.
E esses personagens, como são construídos? David O. Russel dá total liberdade a seus atores, deixa eles soltos para entrar de cabeça nos elementos humanos do roteiro, criando uma química invejável e ao mesmo tempo, sublime. Cristian Bale, em mais uma transformação física, é o protagonista, um homem que quer retomar o controle da sua vida, e está totalmente perdido. Mas não deixa de ser carismático, o clássico malandro da cultura popular de fala desenvolta e sorriso fácil, astuto para saber quando mudar a maré a seu favor; preocupado e triste por estar sob uma sombra de incerteza. E, em cena de um grande sentimentalismo não característico, se mostra especialmente humano: ama verdadeiramente seu filho, a ponto de abandonar a amante por ele. Amy Adams, é sua alma gêmea mesmo nisso, passando de sedutora maliciosa a uma mulher frágil e amedrontada, e faz isso com maestria e extrema naturalizade. A mulher de Irving, Rosalyn, maníaca depressiva, completamente desvairada e ao mesmo tempo extremamente inteligente e manipuladora; e que, bem da verdade é apenas mal amada e infeliz, busca o ideal que criou para si como mulher e mãe; é interpretada por Jennifer Lawrence, um verdadeiro furacão em cena, que rouba a tudo e a todos, seduz um público com seu jeito explosivo e exagerado, quase infantil por vezes; é o que todos querem ver, encantados por uma atuação grandiloquente. Bradley Cooper é outro que também atinge o melhor com seu agente, seduzido pelo caminho fácil e pelo poder, um monstro de ambição, voraz, visceral, imprevisível, destruidor... uma interpretação irretocável e brilhante, a maturidade de um ator. Jeremy Renner é a dúvida: será que o prefeito é realmente um corrupto sem escrúpulos ou ele está sujando as mãos em nome do melhor para o seu povo? Amigável, Renner não nos dá a resposta, apenas, em sua brilhante dubiedade, gera essa dúvida.Louis C.K. e Robert DeNiro fazem pontas interessantes e até nos fazem desejar por mais tempo dos mesmos em tela.
A técnica, como não poderia deixar de sem é igualmente envolvente. É uma ode ao cinema dos grandes diretores dos anos 70. A estética, os cortes rápidos, a câmera ora em close, ora como se fosse a visão dos personagens, intimista, inventiva, dinâmica... um trabalho de dar inveja aos grandes mestres do cinema citados, esmerado, envolvente e belo. A trilha sonora é basicamente não incidental (embora essa, assinada por Dany Elfman, quando aparece, seja de grande qualidade); com muito Duke Ellington e seu Jazz envolvente; o rock da época que vai de Jefferson Airplane a Sir Elton John, o disco; obras que trabalham em simbiose com a trama e com o que se passa com os personagens. Uma escolha minuciosa e acertada que demonstra, mais uma vez, uma brilhante condução. Direção de arte, dispensa comentários: é perfeita em todos os detalhes.
Chegamos então a David O. Russel, um diretor que sempre, infelizmente, morria na praia. Se em O Vencedor fez uma ótima união entre o drama familiar e o drama esportivo mas não conseguiu fugir dos padrões do gênero; se em O Lado Bom da Vida desperdiçou uma excelente construção de personagens em uma comédia romântica recheada de clichês baratos, de um lugar comum desinteressante e fraco; em Trapaça acerta em cheio ao nos jogar na total incerteza. Usa de clichês? Sim, em uma cena ou outra, no momento certo e sem exageros, sem deixar que isso atrapalhe o desejo do espectador no que vem a seguir. Exagera um pouco na verborragia, mas isso não chega a atrapalhar. O apuro técnico é invejável e demonstra que bebeu da mesma água dos grandes mestres, e os homenageia com um estilo que poucos conseguem reproduzir. Mas o seu melhor continua sendo a direção de atores: ele é o grande jogador de xadrez no fundo. Mas, magistralmente, dá as suas "peças" o objetivo que quer atingir; o movimento é por conta delas. Uma demonstração de humildade e confiança. Atinge, assim, a maturidade de diretor e se inscreve no rol dos grandes de Hollywood sem perder as raízes. Um xeque-mate certeiro.
NOTA: 9,5
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